terça-feira, agosto 8

A língua dos alquimistas

Línguas assobiadas são, regra geral, muito antigas e muito raras. Quase todas, como a sfyria, que se assobia em Antia, minúscula localidade no canto sudeste da ilha grega de Evia, são ou eram usadas por populações rurais, em particular por pastores, que precisavam comunicar-se entre dois vales. Há quem defenda que o assobio chegou à ilha trazido por soldados persas, há 2.500 anos. Os últimos assobiadores de Antia conseguem comunicar-se uns com os outros a mais de quatro quilômetros de distância. Gritando, não somos capazes de nos fazer entender além de 400 metros, e rapidamente perdemos a voz.

Felizmente a sfyria não é a última das línguas assobiadas no mundo. Em La Gomera, nas Ilhas Canárias, persiste o silbo gomero. Como a sfyria, o silbo gomero estava à beira da extinção, quando, nos últimos anos do século passado, o governo local decidiu que o mesmo deveria ser ensinado nas escolas públicas. Em 2009, a língua assobiada das Canárias foi reconhecida como Patrimônio Oral Imaterial da Humanidade, pela Unesco, e hoje o seu futuro parece assegurado. Ou seja, existindo vontade política é quase sempre possível reverter o declínio de uma língua.

O colapso das línguas assobiadas está ligado à proliferação dos telefones celulares. Podemos dizer que as línguas assobiadas comprovam a utilidade prática da poesia. Por outro lado, o exemplo da sfyria também nos mostra como a poesia é frágil.
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Habitante de Antia (Grécia)
Muitas das línguas assobiadas conhecidas inspiram-se no canto dos pássaros. Nada que nos deva surpreender. Há muitos anos, enquanto jornalista, entrevistei um poeta e musicólogo angolano chamado Jorge Macedo. Como quase todos os escritores angolanos, Jorge era um personagem interessantíssimo. Estudara marimba em Kinshasa, na atual República Democrática do Congo, uma das cidades mais loucas e mais musicais do planeta. Contou-me que muitas das melodias tradicionais para marimba se haviam inspirado no canto dos pássaros. Deu exemplos, tocando marimba, ao mesmo tempo que imitava diferentes aves canoras. Também me mostrou como algumas palavras do quimbundo e quicongo tinham a sua etimologia na língua secreta dos pássaros.

Poucos anos mais tarde, em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, gravei uma entrevista maravilhosa, entre risos e choros, com a cantora Tetê Espíndola, que me explicou como o jazz se originou do canto de certos pássaros. Tendo escutado antes Jorge Macedo, não me pareceu improvável. Tetê, de resto, sabe do que fala — fala passarês. Em 1991, gravou o álbum “Ouvir/ Birds”, no qual junta a sua famosa voz aguda ao canto de diversas aves da bacia amazônica.

Ainda mais tarde, no interior de Angola, conversando com um antigo soldado da Unita, movimento que durante longos anos combateu o regime instalado em Luanda, ele contou-me que no mato, durante a guerra, os guerrilheiros comunicavam uns com os outros assobiando e cantando como pássaros. Disse-me que haviam desenvolvido toda uma complexa linguagem, estudando o canto de diferentes aves.

As conversas com Jorge Macedo, Tetê Espíndola e aquele antigo guerrilheiro sem nome ajudaram-me a escrever “Milagrário pessoal”, um romance que tem como personagem principal a língua portuguesa, mas que trata, na verdade, do fascinante mistério da fala. Descobri, enquanto escrevia o romance, que persistem em culturas diversas, geograficamente distantes umas das outras, um sem número de mitos sobre a participação dos pássaros na criação das línguas humanas. Um dos mais interessantes é o da língua verde, ou língua dos pássaros, utilizada pelos alquimistas, e considerado um idioma perfeito, o único no qual seria possível expressar os mistérios mais profundos da existência. Esta língua verde seria também ela assobiada.

Talvez a sfyria, o silbo gomero, ou qualquer outra das raras línguas assobiadas que ainda resistem sejam, afinal, o idioma perdido dos alquimistas. O que sei, com toda a certeza, é que sempre que uma língua morre perdemos com ela não apenas palavras, mas formas únicas de exprimir sentimentos e emoções — e a cada 14 dias há uma que se extingue.

Talvez a tecnologia ameace algumas destas línguas, como os celulares no caso das línguas assobiadas; contudo, é também a tecnologia que pode ajudar a salvá-las: o Google, por exemplo, criou uma plataforma, a Endangered Languages, onde qualquer pessoa pode colocar vídeos e gravações de áudio, bem como documentos, sobre línguas em vias de extinção. Parece-me necessário muito mais. Mas é um princípio.

José Eduardo Agualusa

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