segunda-feira, agosto 21

Sacodem o pó

Until I feared I would lose it, I never loved to read. One does not love…
Menos de dois meses que levava ao serviço dos Mala­faias, e já o meu trabalho corria com ordem e aviamento.(...) Nas primeiras semanas, todas as manhãs, Domingos, o lacaio, ajeitava o escadote contra as estantes e, trepando arriba, com a serena azáfama dum trolha demolindo um muro, despejava sobre o tapete os séculos veneráveis. Tratados e analec­tos, sermonários e miscelâneas, malhavam em baixo impiedosamente; e, com os pergaminhos lívidos e as carneiras de tom melancólico, os fechos de bronze aber­tos e os nervos desconjuntados, pareciam-me nobres finados cuspidos da tumba. O senhor Miguel de Mala­faia, porém, recomendara:

- Atira, Domingos, sacodem o pó e sai-lhes a bicheza.

De casaco branco e cara rapada, como estava na etiqueta dum flâmulo de embaixador, ?Domingos construía no chão a meda de calhamaços. E, feita ela, de volta a ilustrar dez doutores e a fornecer-me ocupação para todo o dia, ia-se para a varanda espanejá-los, catar-lhes a traça, batendo-os no balaústre,m passando-os ao esfregão, soprando-lhes. O seu recado era fazer guerra à poeira e grande sanha punha em servir. E, prosseguindo na sua teima idiossincrásica, de tudo lavar e brunir, ia vandalizando livros (...).

Aquilino Ribeiro (1885-1963), "Vida sinuosa" 

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