domingo, agosto 27

Da vida pequena

Temos o hábito de olhar para o mundo assim: o mundo todo, a totalidade do mundo. “As pessoas” quer dizer: todas as pessoas, a Humanidade. Como se o nosso fosse o olho infinito de Deus. Pensamos no macro. “Pensar grande” é mesmo um mandamento, e significa: veja a floresta, não se prenda a uma árvore só. E está bem, isso. É como se podem fazer as grandes análises e diagnósticos necessários. Que movem, depois, as ações com que vamos, puxando a esperança dos desvãos onde ela ainda resiste, mudar para melhor uns pedacinhos de mundo. Tudo bem.

Mas existem as árvores. Uma árvore. Duas. Uma pequena vizinhança de árvores. Dão suas sombras pequenas, às vezes misturam sombras, fazem dossel para os bichos e as gentes passarem. São, vamos dizer assim, dotadas de uma bondade particular. Microbondades. — E se um pedaço da esperança estiver nas árvores individuais, nas suas vidas pequenas? — Uma coluna para as vidas pequenas. Podemos nos alegrar no fim.

É assim. Há uma pessoa. Pode ou não ter uma casa que seja seu lugar de estar na vida. Quando não, pode viver em lugares precários, um teto pouco, ou ao Deus dará. E aí é triste e revoltante. Mas vamos só um pouquinho, o espaço de um palmo de escrita, esquecer as macrorrevoltas. Existe essa pessoa aqui. Chama-se Celso e dorme encostado no edifício aqui ao lado. Esse lugar é dele. Triste, mas seu, lugar. As pessoas dormem e acordam. Tomam ou não um café da manhã. Têm em casa as provisões para ele ou as conseguem com vizinhos ou passantes. (Uns vão apressados; outros oferecem um pão. Não é mentira: há quem ofereça o pão. Não são poucos.) E, mais ou menos bem, mais ou menos mal alimentadas, vão à vida.

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“A vida”. Dito assim parece uma coisa genérica. Uma ocupação do tempo. Diz o homem cheio de trabalho: tenho uma vida muito ocupada. Diz o que não tem emprego: estou com tempo na vida. Ou não: quem trabalha também tem tempo. Quem não trabalha procura, e isso toma tempo. A vida, vida mesmo, é a leveza e o peso com que as pessoas ocupam mais ou menos 16 horas de um dia. Depois vão dormir. Também é vida. Uma que se passa no escuro e nos sonhos. Vinte e quatro horas de fazer e não fazer coisas. De ver gente, de conversar, amar, se espantar com o belo e o feio. Um pôr de sol, uma vala negra. Um desastre de trem. Uns jovens tocando música no metrô. Coisas todas das vidas pequenas.

E nesse dia de vida acontecem coisas. Pessoas se apresentam diante de outras, por exemplo. Cena: alguém pede o que se chama “esmola”: tio, é pra comer... Alguém passa. Uns nem olham. Uns se afastam para a ponta da calçada: têm medo, ou nojo. Uns passam e o coração se aperta: pobrezinho, isso não devia acontecer. E vão embora, torturados por alguns segundos. Alguns minutos. Uns dão a esmola. “É pra comer, tio...”. Outros param.

Conversam. Informam-se da vida da pessoa que não tem e pede. Uns, poucos, vão até a padaria e trazem pão. E há os que, pouquíssimos, levam a pessoa que pede à padaria e dizem: “pegue o que você quer”. Depois pagam e saem. Uns cheios de bom coração realizado. Outros tristes. Merda de vida.

Nos bairros remediados, nas comunidades pobres há a bondade de vizinhança. Há quem dê aos vizinhos o pouco que tem, e, bem apertado, podia sobrar. Dividem. (Não é imagem de um coração idílico. Acontece mesmo.) Dividir o pouco é uma das formas mais belas da bondade humana. Chama-se solidariedade. A generosidade das pequenas vidas.

Sempre me surpreende, e me aperta o coração, ver que ao lado de um cadáver na rua aparecem logo quatro velas e um lençol por cima. E nos lugares das grandes tragédias, flores, velas, bilhetes. Pequenas montanhas de tristeza. Pessoas em volta, um grande silêncio. A televisão mostra, e é um espetáculo. Para quem está lá, é um abandono desconsolado. Uma pausa infeliz na pequena vida que iam levando. Já estive num lugar assim, eu e a minha família. O coração pequeno como uma casquinha de noz. Boca sem palavras. Para dizer o quê? Estava tudo lá.

Mas há também a hora de encontrar amigos, cantar, ficar alegre. Cantar para alguém é um ato de amor. Uma bondade pequena numa vida pequena. Depois ali acaba, as pessoas se separam, mas vai junto a memória do canto. E é bom. Eu venho para a minha boa casa. O Celso se encosta no edifício ao lado. É triste. É tristíssimo. Mas dormimos, e a noite abençoa tudo.

É assim. Há mais bondade e alegria nas vidas pequenas do que pensamos quando pronunciamos os macrojulgamentos. Vamos honrá-las. São tão bonitas! Merecem um olho bom, subitamente encantado.

Semana que vem voltamos às coisas sérias de intelectuais. E as vidas pequenas saem do nosso horizonte. Ou não, podemos conversar sobre poesia. Ou música. Amor. É o que fica no meio do grande e do pequeno. É um bom lugar para pensar sem esquecer.

Marcio Tavares D'Amaral

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