sábado, agosto 19

O riso de Kafka

Se bater na mesma tecla for estilo, finalmente encontrei o meu.

Ando escrevendo seguidos textos falando sobre o que há de humor em artistas austeros. Foi assim com uma resenha discorrendo sobre Lima Barreto e outra em que mencionava James Joyce como um autêntico piadista.

A razão para que os vejam assim tão circunspectos – sem ressaltar esse aspecto em suas narrativas – é a mania da fortuna crítica de transformar em estatuária os autores clássicos.

Agora vou repisar a minha hipótese aqui na Rubem, desta vez mencionando Franz Kafka. Para mim, o criador de universos tão claustrofóbicos como os de A Metamorfose era um cultor da blague.

E não só para mim. Para seus amigos mais próximos também, já que admitiam que Franz, ao promover uma leitura de O Processo aos mais íntimos em primeira mão, caiu na gargalhada em inúmeras passagens.
3a70c1bafc788d6bc62c35cb10d630e5: “Nós, os amigos, morremos de rir quando ele nos fez conhecer o primeiro capítulo de O Processo. E ele mesmo ria tanto que por momentos não podia continuar lendo. Bastante assombroso, se se pensa na terrível seriedade desse capítulo. Mas acontecia assim.”
Max Brod


É claro que o humor de Kafka não é o mesmo de um Paul Beatty, muito menos o dos Trapalhões.

Notem o que afirma o professor de literatura David Foster Wallace numa palestra sobre o tema:

“Em Kafka, não há jogos de palavras recorrentes nem acrobacias aéreas verbais, e pouco no que se refere a tiradinhas jocosas e sátiras mordazes. Não há humor baseado em funções corporais em Kafka, nem insinuações sexuais, nem tentativas estilizadas de se rebelar transgredindo as convenções. Nem comédia pastelão pynchonesca com cascas de banana ou adenoides fora de controle. Nem priapismo rothiano, metaparódia barthiana ou lamúrias à moda de Woody Allen. Não há sinal algum das viradas tum-tum-pá dos seriados cômicos modernos; tampouco crianças precoces, avós desbocados ou colegas de trabalho cinicamente insurgentes.”

Trata-se de um riso muito singular o de K. É, como já se disse, aquele esgar que se dá após presenciarmos um tombo. E, com certeza, ninguém, depois de um dia de trabalho vai abrir um livro seu, junto com uma latinha de cerveja, e dar umas boas gargalhadas para relaxar. O que não significa que não haja naquelas páginas fina ironia e pessimismo em altas dosagens.

Um exemplo é a miniestória “Camundonguinho”, presente no livro “Oportunidade para um Pequeno Desespero” (Martins Fontes), com contos e parábolas de Franz Kafka e ilustrações de Nikolaus Heidelbach:
“Quando o pequeno camundongo, que fora amado no mundo dos camundongos como nenhum outro, em uma madrugada caiu na ratoeira e com um alto berro deu sua vida pela visão de um toicinho, todos os camundongos das redondezas foram tomados por um tremor e uma agitação em suas tocas, olharam-se um aos outros em série, com os olhos piscando incontrolavelmente, enquanto a cauda esfregava o chão com um zelo inútil. Então saíram hesitantes, um empurrando o outro, todos atraídos para o local da morte. Ali jazia ele, o camundonguinho querido, o ferro na nuca, as perninhas cor-de-rosa encolhidas, paralisado o fraco corpo que teria sido tão bem agraciado com um pouco de toicinho. Os pais estavam de pé ao lado e observavam os restos de seu filho.”.

David Foster Wallace nos ensina em sua palestra que o humor de Kafka não é para ser “sacado” feito uma piada. E isto, no fundo, talvez seja o mais engraçado de tudo.

Carlos Castelo

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