segunda-feira, novembro 27

O dia em que o Estado Novo queimou um dos maiores clássicos da literatura brasileira

Há 80 anos, em novembro de 1937, uma fogueira insólita ardia na Cidade Baixa de Salvador, a poucos passos do Elevador Lacerda e do atual Mercado Modelo.

A fumaça subia da praça pública em frente à então Escola de Aprendizes de Marinheiro, hoje o comando do 2º Distrito Naval da Marinha brasileira. Militares e membros da comissão de buscas e apreensões de livros, grupo nomeado pela Comissão Executora do Estado de Guerra do governo, assistiam ao "espetáculo".

O fogo era um símbolo dramático do combate à "propaganda do credo vermelho", como definiram as autoridades do recém-instalado Estado Novo de Getúlio Vargas. Na ocasião, foram queimadas mais de 1,8 mil obras de literatura consideradas simpatizantes do comunismo.

Mais de 90% dos exemplares incinerados, recolhidos nas livrarias de Salvador, eram de autoria de um jovem escritor baiano já proeminente com obras de cunho marcadamente social: Jorge Amado. Metade do lote, 808 no total, era de sua obra lançada meses antes, Capitães da Areia.

O Brasil dos anos 1930 fervilhava em tensões políticas, e o comunismo era um dos seus ingredientes.

Após a chamada Intentona Comunista, tentativa de levante liderada pelo capitão do Exército Luís Carlos Prestes em 1935, o governo passou a perseguir não apenas membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB), como intelectuais associados (corretamente ou não) à ideologia de Moscou.

Um dos casos mais notórios foi o do escritor Graciliano Ramos. Em Memórias do Cárcere, ele narra sua história como preso político - de 1936 a 1937.

Mais de 90% dos livros condenados à fogueira
 em Salvador eram obras de Jorge Amado
Em 1937, a poucos meses das eleições presidenciais, passou a circular nos principais veículos de comunicação do país um plano falso para instaurar o comunismo no Brasil, elaborado pelo general Olympio Mourão Filho - o mesmo que lideraria mais tarde o golpe de 1964.Image captionCapitães da Areia, lançado em 1937, correspondia praticamente à metade do lote incinerado na capital baiana | Crédito: Fundação Casa de Jorge Amado

Batizada de Plano Cohen (um toque de antissemitismo que os historiadores não deixariam passar), a trama forjada sustentava a versão de que havia ordens da Terceira Internacional Comunista para assassinar diversos políticos e tomar o poder no país.

No poder desde 1930, Getúlio Vargas usou a estupefação criada pelo Plano Cohen para fechar o Congresso, cancelar as eleições e implantar o golpe de Estado no dia 10 de novembro de 1937.

Sob o novo regime, não surpreende que Capitães da Areia, uma crítica mordaz à desigualdade, que transformava meninos de rua em heróis, em vez de tratá-los como delinquentes e malandros, tenha engrossado desde o início a longa lista de obras censuradas. Além disso, o livro foi escrito por um autor filiado ao PCB - e que seria preso duas vezes por conta disso.

"No Estado Novo, qualquer coisa considerada ofensiva à moral e aos bons costumes virava alvo do regime", disse à BBC Brasil o escritor Lira Neto, autor da trilogia Getúlio.

"Os principais intelectuais do Brasil naquele momento ou foram presos ou cooptados."

Lira Neto lembra que até Reinações de Narizinho, livro infantil de Monteiro Lobato, seria alvo da censura do Estado Novo.

O próprio Lobato seria preso em 1941 - ironicamente, depois de recusar o convite de Vargas para dirigir o Departamento de Propaganda, órgão que tinha a dupla missão de promover o culto à personalidade do mandatário e exercer censura prévia a ideias contrárias.

De volta ao ano de 1937, na mesma fogueira em que ardiam centenas de livros de Jorge Amado, engrossavam as chamas algumas cópias de Menino de Engenho, de José Lins do Rego - uma exposição da desigualdade nas relações sociais no campo brasileiro.
Longevidade

Mas, apesar da intenção do governo de enterrar a obra, Capitães da Areia se tornou, 80 anos após o lançamento, um clássico da literatura nacional, uma denúncia longeva de um fracasso social que continua atingindo as cidades brasileiras.

"Era uma carta de denúncia de uma situação social gritante, de extrema pobreza, sobretudo em relação aos jovens e às crianças", disse à BBC a cineasta e neta do escritor, Cecília Amado.

"Não é à toa que os livros foram queimados, porque (para o governo) era uma vergonha mostrar aquilo."

Nascido em Itabuna, no sul da Bahia, Jorge Amado viveu e frequentou a região do Pelourinho, do porto e da Cidade Baixa de Salvador quando se mudou para a capital baiana.

"Eram regiões muito populares e, portanto, ele conviveu muito com os capitães da areia da época", contou Cecília, em um documentário de rádio em inglês para o Serviço Mundial da BBC.

"Ele gostava de conversar com as pessoas do povo, da rua. Era um hábito dele puxar conversa com as pessoas, ouvir suas histórias, e acredito que desse modo ele se relacionou com esses meninos, que eram personagens reais."

Jorge Amado era um jovem de 25 anos, politicamente engajado, quando Capitães da Areia começou a decolar. A expressão, disse a neta, não foi inventada pelo escritor - era como a imprensa da época se referia aos menores abandonados na região das praias.

"Falar desses meninos, de uma classe oprimida, marginalizada e rejeitada pela sociedade, e transformá-los em heróis, era de certa forma buscar nesses meninos um heroísmo que tinha a ver com sua ideologia política da época."

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