quinta-feira, novembro 23

O homem e o livro

A mais violenta forma de censura ao livro é a sua destruição física: o livro não é, nesse caso, apenas proibido, ou seja, retirado da circulação – é aniquilado, queimado, de preferência, na praça pública, para exemplo e proveito.

She could not stop the flames coming from her, and could not stop her heart from breaking as they turned the books she loved most in the world into ashes...
Como já dissemos, os nazis não foram os primeiros a queimar livros, mas souberam fazê-lo com pompa e circunstância. Deram início às suas ações purificadoras, em 1933, quando uma parada de milhares de estudantes, munidos de tochas, deitaram fogo a uma pilha de 20 000 livros, na Universidade de Berlim, perante o Ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, que, simultânea e elegiacamente, proclamava: “A alma do povo alemão pode exprimir-se. Estas chamas… iluminam… o fim de uma era e acendem uma nova.”

Felizmente, nem todos os seres humanos são igualmente inclinados à queima de livros. No outro extremo, poderíamos até citar o filósofo Montaigne, autor dos famosos Ensaios, que, perguntado sobre o que faria, se lhe dessem a escolher entre queimar os seus filhos e queimar os seus livros, respondeu candidamente, que preferiria queimar os filhos. Il y en a de toutes les couleurs.

Seja como for, queimadores de livros houve-os em todos os tempos e de todos os formatos. Mas o pior deles todos talvez tenha sido o primeiro imperador da China, Shi Huang Ti (250 – 210 a. C.), que mandou enterrar vivos 460 académicos e queimar todos os livros existentes no reino, excepto um exemplar de cada um, que mandou depositar na biblioteca real. Mas, mesmo estes, planeou destrui-los antes de morrer, raciocinando que, se todos os registos desaparecessem, a história começaria com ele. De tal modo se tornou odioso com este seu procedimento, que várias gerações, após a sua morte, se vingaram conspurcando-lhe o túmulo.

Houve vários mártires célebres entre os autores de livros: desde Sócrates, que aliás não deixou um único livro, limitando-se a exprimir os seus pensamentos na praça pública, sendo por isso obrigado a morrer, tomando cicuta; passando por Lucano, poeta romano, a quem Nero, ciumento da sua poesia, ordenou que se suicidasse; ou pelo poeta persa Amra Taraja, enterrado vivo por ter escrito um poema em que criticava o rei, a lista dos mártires é interminável. Alessandro Cagliostro apodreceu e morreu numa prisão romana por ter escrito obras consideradas heréticas; o poeta francês André Chénier foi guilhotinado por ter escrito contra o Terror; consta também que o romancista russo Maxim Gorky que, no entanto, teve funeral nacional, foi envenenado por ordem de Staline; John Milton, o autor de Paradise Lost, escapou por pouco de subir ao cadafalso, por ter escrito contra o direito divino dos reis (valeu-lhe alguns amigos terem intercedido a seu favor); Boris Pasternak viu-se obrigado a não ir a Estocolmo receber o Prémio Nobel, sob risco de o não deixarem regressar à Rússia; e Alexander Solzenitsyn viu-se forçado ao exílio na boa esteira de Eurípedes, Aristóteles, Ovídio, Dante, Villon, Voltaire e Victor Hugo.

O fogo purificador está sempre vigilante, por todo o lado: porque, se Hemingway, por exemplo, viu os seus livros queimados pelos nazis, As Vinhas da Ira, de Steinbeck, não precisaram de sair dos Estados Unidos para sofrerem igual tratamento: em 1939, o livro foi queimado pela Biblioteca Pública, de Saint Louis, no Missouri. Dizia Milton que quem destrói um livro, destrói a própria Razão e mata a imagem de Deus. Assassinos destes não terão faltado, na história do homem na Terra.
(P. S. – Para maior aprofundamento e mais extensa e variada informação sobre estas picardias do ser humano, aconselharia o livro The Literary Life & Other Curiosities, de Robert Hendrikson, na Penguin Books.)
Eugénio Lisboa, publicado na Revista Ler nº 147 

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