quinta-feira, setembro 13

Assim começa o livro...

No dia da posse do novo presidente, quando nos preocupávamos que ele pudesse ser assassinado ao desfilar de mãos dadas com sua esposa excepcional por entre os vivas da multidão, e quando tanta gente estava à beira da ruína econômica logo depois da explosão da bolha imobiliária, e quando Isis ainda era uma deusa mãe egípcia, chegou de seu país distante a Nova York um rei não coroado de setenta e tantos anos com seus três filhos sem mãe para tomar posse do palácio de seu exílio, comportando-se como se não houvesse nada de errado com o país, com o mundo ou com sua própria história. Ele começou a governar seu bairro como um imperador benevolente, embora, apesar de seu sorriso encantador e de sua habilidade ao tocar seu violino Guadagnini de 1745, ele exsudasse um odor pesado, barato, o cheiro inconfundível de perigo crasso e despótico, o tipo de aroma que nos alerta: cuidado com esse sujeito, porque ele pode ordenar a sua execução a qualquer momento, se você estiver usando uma camisa desagradável, por exemplo, ou se ele quiser ir para a cama com sua mulher. Os oito anos seguintes, os anos do quadragésimo quarto presidente, foram também os anos do domínio cada vez mais desordenado e alarmante sobre nós do homem que se chamava de Nero Golden, que não era um rei de fato, e ao final de cujo mandato houve um incêndio imenso e, metaforicamente, apocalíptico.

O velho era baixo, podia-se dizer até atarracado, usava o cabelo, ainda quase todo escuro apesar da idade avançada, esticado para trás de forma a acentuar seu bico de diabo. Tinha olhos pretos e penetrantes, mas o que se notava primeiro — ele sempre arregaçava as mangas da camisa para garantir que notassem — eram os antebraços grossos e fortes como os de um lutador, que terminavam em mãos grandes, perigosas, cheias de grossos anéis de ouro cravejados de esmeraldas. Poucas pessoas ouviram algum dia ele elevar a voz, porém não se tinha nenhuma dúvida de que dentro dele espreitava uma grande força vocal que era melhor não provocar. Vestia roupas caras, mas havia nele uma qualidade ruidosa, animal, que fazia pensar na Fera do conto de fadas, pouco à vontade em vestes humanas. Todos nós que éramos seus vizinhos tínhamos bastante medo dele, embora ele fizesse imensos e desastrados esforços para ser sociável e receptivo, ao apontar a bengala agitada para nós e insistir, em momentos inconvenientes, que as pessoas fossem até ele para coquetéis. Sempre inclinado para a frente, parado ou andando, como se lutasse constantemente contra um vento forte que só ele sentia, um pouco dobrado a partir da cintura, mas não muito. Era um homem poderoso; não, mais que isso — um homem profundamente apaixonado pela ideia de si mesmo como poderoso.

A bengala era mais decorativa e expressiva do que funcional. Quando caminhava pelos Jardins dava toda a impressão de tentar ser nosso amigo. Com frequência estendia a mão para agradar nossos cachorros, ou afagar os cabelos de nossos filhos. Mas crianças e cães recuavam ao seu toque. Às vezes, ao olhar para ele, eu pensava no monstro do dr. Frankenstein, um simulacro de humano que fracassava totalmente em expressar qualquer humanidade real. Sua pele era couro marrom e o sorriso cintilava com obturações de ouro. Sua presença era brusca e não totalmente civilizada, mas ele era imensamente rico e, portanto, claro, era aceito; mas no geral, em nossa comunidade de artistas, músicos e escritores urbanos, não era popular.

Devíamos ter imaginado que um homem que assumira o nome do último dos monarcas de Roma da linha júlio-claudiana e depois se instalou numa domus aurea estava admitindo publicamente sua loucura, transgressão, megalomania e iminente destruição, ao mesmo tempo que dava risada de tudo isso; que tal homem desafiava o destino, estalava os dedos debaixo da Morte que se aproximava, e dizia: “Se quiser, pode, sim, me comparar com aquele monstro que encharcava cristãos com óleo e acendia para iluminar seu jardim à noite! Que tocava a lira enquanto Roma ardia (não existiam violinos de fato na época)! Eu me chamo Nero, sim, da casa de César, último dessa linhagem sangrenta, e faço disso o que bem quiser. Eu simplesmente adoro meu nome”. Ele sacudia sua maldade diante de nossos narizes, se divertia com isso, nos desafiava a observá-la, desprezava nossa capacidade de compreensão, convencido de sua habilidade de derrotar facilmente qualquer um que se levantasse contra ele.

Ele chegou à cidade como um daqueles monarcas europeus destronados, chefes de famílias destituídas que ainda usavam como último nome os honoríficos grandiosos da Grécia, da Iugoslávia ou da Itália e que tratavam o lamentável prefixo ex como se não existisse. Suas maneiras diziam que ele não era ex-nada; era majestoso em tudo, nas camisas de colarinhos engomados, nos punhos, nos sapatos ingleses sob medida, no modo de avançar para portas fechadas sem reduzir o passo, sabendo que abririam para ele; também em sua natureza desconfiada, devido à qual ele realizava reuniões diárias individuais com seus filhos para perguntar a eles o que os irmãos diziam a seu respeito; e em seus carros, seu gosto por prostitutas, uísque, devilled eggs e seu lema sempre repetido — favorito de governantes absolutistas desde César até Haile Selassie — que a única virtude que vale a pena é a lealdade. Ele mudava de celular com frequência, não dava o número a quase ninguém e não atendia quando tocava. Não permitia a entrada de jornalistas e fotógrafos em sua casa, mas em seu círculo regular de pôquer havia dois homens que estavam sempre lá, libertinos de cabelo grisalho, vistos no geral vestidos com jaquetas de couro havana e gravatas listradas de cores vivas, muito suspeitos de terem matado suas esposas ricas, embora num caso não tenha sido feita nenhuma acusação e, noutro, a acusação não colou.

Quanto à sua esposa ausente, ele calava. Em sua casa de muitas fotografias, cujas paredes e aparadores de lareira eram povoados por estrelas do rock, premiados com o Nobel e aristocratas, não havia nenhuma imagem da sra. Golden, ou seja lá como ela se chamava. Era muito claro que havia alguma desgraça implícita, e fofocávamos, vergonhosamente, sobre o que podia ser, imaginávamos a dimensão e a ousadia das infidelidades dela, conjurando-a como alguma espécie de ninfomaníaca de alta classe, sua vida sexual mais flagrante que a de qualquer estrela do cinema, seus desvios sabidos por absolutamente todo mundo, exceto o marido, cujos olhos, cegos de amor, continuavam a adorá-la como acreditava que ela fosse, a esposa amorosa e casta de seus sonhos, até o dia terrível em que os amigos dele lhe contaram a verdade, vieram em grande número contar a ele, e como ele se enfureceu!, como os injuriou! chamou-os de mentirosos e traidores, e foi preciso que sete homens o segurassem para impedir que agredisse aqueles que o forçaram a olhar a verdade, e ele por fim a encarou, aceitou, expulsou-a de sua vida e proibiu que jamais voltasse a ver os filhos. Mulher má, dissemos uns aos outros, e nos consideramos experientes, a história nos satisfez e assim a deixamos, mais preocupados de fato com nossas próprias questões e interessados nos assuntos de N. J. Golden só até certo ponto. Viramos as costas e continuamos com nossas vidas.

Como estávamos errados.

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