quarta-feira, setembro 26

José David

Susa Monteiro
José David nasceu no Ribatejo numa família pobre e portanto começou a trabalhar muito pequeno, ajudando os pais. Muito pequeno ainda, disse, aos quatro ou cinco anos, levantava-se para tratar dos animais e numa dessas manhãs encontrou o pai enforcado numa trave do curral e ficou sozinho com a mãe, uma senhora muito bonita de quem só conheço a fotografia a olhar para mim atrás do vidro. A infância dele foi difícil, a juventude também, começou a trabalhar muito cedo, a certa altura veio sozinho, adolescente, para Lisboa, comeu o pão que o diabo amassou, lá conseguiu arranjar um emprego como gráfico porque o Zé queria ser pintor, começou a desenhar, a pintar, a ganhar um bocadinho melhor embora sempre pouco, até encontrar um amigo, na rua, que lhe perguntou se ele não estava farto de dar voltas à Praça do Chile. O Zé pensou nisso, achou que sim e decidiu emigrar. Foi ao aeroporto e comprou um bilhete para Londres. Depois viu que existia um voo mais cedo para Paris de modo que apanhou um avião para Paris. Não conhecia lá ninguém. Comeu o pão que o diabo amassou, porque não repetir a expressão, em empregos desgraçados até lhe aparecer um trabalho de capista num magazine médico e uns ganchitos aqui e acolá em algumas revistas. E continuou a pintar. O que mais queria era pintar e à força de muito trabalho e do talento que tinha, claro, conseguiu uma vida mais ao menos. E continuou pintando. A certa altura convidaram-no para fazer a capa de um romance português numa editora pequena, a única em Paris que aceitou o primeiro livro de um portuga desconhecido chamado António Lobo Antunes. O livro tinha o título Os Cus de Judas, o Zé, cuja obra ia aumentando e crescendo, aceitou um pagamento medíocre pela capa. Houve um lançamento onde o tal António não conhecia ninguém. De súbito viu o Zé David: pequeno, careca, de bigode imenso, escuro, com um sorriso lindo que lhe transformava os olhos em duas fendas de caixa de esmolas. O tal António veio ter com ele e começou a falar-lhe em português porque o Zé era o sujeito com o aspecto mais português que ele alguma vez tinha visto. E ficaram amigos para a vida. Aliás, nas suas cartas, o Zé às vezes assinava Zé da Vida. A amizade entre eles foi aumentando. Quando estavam juntos estavam juntos mesmo. Quando não estavam juntos o Zé da Vida escrevia cartões e na outra face um desenho ou uma aguarela. E o tal António começou assim a tornar-se colecionador da obra do Zé da Vida, as tais aguarelas, algumas gravuras, alguns desenhos, alguns quadros. Um dos seus temas favoritos eram os toiros que lhe encheram a infância. Falavam muito. O Zé da Vida cozinhava muito bem e penso que gostavam imenso um do outro. Pelo menos o tal António gostava, o Zé da Vida penso que também. Encontravam-se em Paris e em Lisboa quando o Zé de vez em quando cá vinha. Falavam imenso de pintura e de escrever também. Uma ocasião 
estavam a comer num restaurante barato e um tipo na mesa ao lado voltou-se para eles e ordenou-lhes

– Parlez français

com essa amabilidade e calor humano típicos dos Çá Vás. O tal António mandou-o educadamente para o caralho e seguiu-se um certo burburinho com o Zé aflito que lhe tirassem a autorização de estar em França. Isto já na esquadra. A senhora da editora lá resolveu o problema. Deve ter explicado aos Çá Vás que vá para o caralho é um cumprimento respeitoso. Entretanto o Zé da Vida ia vivendo um bocadinho melhor, cozinhava com mais competência que uma estrela Michelin, passeavam por Paris e a amizade entre eles continuava a crescer. Depois apareceu a Françoise, o Zé da Vida casou com a Françoise e tornou-se um marido modelo. Foi-se tornando também um pintor cada vez melhor. A sua bondade, a sua generosidade e a sua ternura eram imensas. A seguir ao jantar o Zé da Vida mostrava os quadros ao amigo. Levantava-se cedíssimo e trabalhava imenso. O tal António gostava da pintura e do apaixonado entusiasmo da sua vocação. O tal António achava o Zé da Vida, para além de pintor, um santo. Um exemplo de perseverança e generosidade. Um homem que, desde tão criança ainda, viveu toda a vida com uma coragem e uma modéstia exemplares

(Um aparte: o tal António nunca viu fumar cigarros até ao fim: só o Zé da Vida sabia fazer isso.)

Depois o Zé da Vida tinha um amigo com uma doença no intestino, e o amigo pediu-lhe para o acompanhar ao hospital. O amigo teve alta mas o Zé da Vida ficou internado, com um mal crónico da tripa que passou a fazer parte da sua personalidade e que, até certo ponto, lhe limitava a existência. Mas o Zé da Vida nunca se queixou, da mesma forma que o tal António nunca lhe disse nada. Nenhum deles deu importância à desgraça e o sorriso do Zé da Vida continuava a encher o mundo com a sua tranquila, orgulhosa humildade. Depois do jantar, da conversa e dos quadros o Zé da Vida acompanhava o tal António ao hotel e o tal António ficava à entrada a vê-lo afastar-se. O Zé da Vida foi o santo laico mais sem pecados que o tal António conheceu. E podes ficar descansado, porque eu gostava do teu trabalho. Isto durou anos e anos. Depois passaram a ver-se menos porque a existência e tal e coisa. Mas o tal António continuava a gostar muito dele. Depois soube que o Zé da Vida tinha morrido e andou discretamente a apagar lágrimas dos olhos como quem sopra velas de um bolo de aniversário. Claro que ninguém o viu chorar, era o que faltava. Diante de um sorriso como o do Zé o que se pode fazer salvo sorrir também? Mas o que no fundo me apetece, sabes, é mandar a morte para o caralho igualmente.

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