sexta-feira, setembro 14

Quadrinhos, uma leitura para adultos

Quando eu era criança, ler histórias em quadrinhos não era estimulado lá em casa. Meu Pai, que sabia como livros podem ser importantes na vida de uma pessoa, nunca entendeu exatamente os quadrinhos, e os via como uma espécie de literatura “facilitada”, capaz de me afastar dos bons romances. “Tintin” e “Astérix” eram honrosas exceções, porque reforçavam o francês que minha irmã e eu aprendíamos, e porque, afinal, eram mesmo maravilhosos — mas revistinhas de super-heróis ou de ratos falantes não faziam parte do nosso cotidiano.

Não sei — na verdade, não me lembro — se esse era um preconceito comum na época. O que sei é que precisei viver muitos e muitos anos até me entender com a espécie: os quadrinhos não foram parte natural da evolução da minha vida cultural, mas um gosto adquirido.

No começo dos anos 1990, uma história em quadrinhos sobre o Holocausto ganhou o Prêmio Pulitzer, e chamou a minha atenção. Era “Maus”, de Art Spiegelman, um dos livros de maior impacto que já li, figurinhas ou não figurinhas. Parte memória, parte documentário, parte autobiografia, ele puxa o fio da complexa relação do autor com o pai, um sobrevivente de Auschwitz, e traça um retrato devastador da humanidade.

“Maus” não tinha nada de engraçadinho ou de condescendente, nada da leveza que, até então, eu associava automaticamente com histórias desenhadas — ainda que seus personagens sejam ratos, gatos e outros bichos falantes. Não vivi essa experiência sozinha. Um mundo novo se abriu para muita gente que, até então, não fazia ideia do poder das HQs. Não é exagero dizer que todo um mundo novo, aliás, tanto de leitores quanto de autores, cresceu a partir de “Maus”.


Aprendi na época uma expressão então relativamente recente, “graphic novel”, usada para livros, em oposição a revistas, ainda que não sejam necessariamente romances. Aprendi também a procurar as estantes de quadrinhos nas livrarias, que antes não me chamavam a mínima atenção. De lá para cá, gastei mais ou menos o PIB da Bolívia em graphic novels e descobri livros pelos quais me apaixonei para sempre.

“Fun home”, de Alison Bechdel, é um deles: uma visita ao passado e à vida em família, no cenário bizarro de uma mansão vitoriana restaurada nos mínimos detalhes, e perdida numa cidadezinha provinciana da Pensilvânia.

O fun home do título não significa apenas “casa engraçada”; é assim que a família se refere ao seu negócio, a funerária, funeral home em inglês. Há pouca coisa realmente fun nessas memórias doloridas e claustrofóbicas, mas nem tudo é angústia ou desamor. Bechdel revê a sua infância de altos e baixos, o casamento conturbado dos pais, a descoberta da sua própria sexualidade refletindo o homossexualismo reprimido do pai, grandes dúvidas, longos silêncios.

É uma obra-prima.

“Fun home: uma tragicomédia em família” acaba de receber uma nova edição brasileira, traduzida por André Conti e publicada pela Todavia. Procure por ela quando for à livraria da próxima vez; aproveite e passe um tempo na seção das graphic novels, que merece muito mais atenção do que em geral recebe de nós, leitores adultos.

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