segunda-feira, outubro 22

Da biblioteca pessoal de Borges

 Néstor Sarmiento
Nos finais do século XIX, Groussac pode escrever com veracidade que ser famoso na América do Sul não era deixar de ser um desconhecido. Essa verdade, naqueles anos, era aplicável a Portugal. Famoso na sua pequena e ilustre pátria, José Maria Eça de Queirós (1845 -1900) morreu quase ignorado pelas outras terras da Europa. A tardia crítica internacional consagra-o agora como um dos prosadores e romancistas da sua época.

Eça de Queirós foi esta coisa um tanto melancólica: um aristocrata pobre. Estudou Direito na Universidade de Coimbra e, uma vez terminado o curso, desempenhou um cargo medíocre numa província medíocre . Em 1869, acompanhou o seu amigo, o conde de Resende, à inauguração do canal de Suez. Passou do Egito para a Palestina, e a evocação dessas andanças perdura em páginas que muitas gerações leem e releem. Três anos depois ingressou na carreira consular. Viveu em Havana, em Newcastle, em Bristol, na China e em Paris. O amor à literatura francesa nunca o abandonaria. Professou a estética do Parnaso e, nos seus muito diversos romances, a de Flaubert. Em O Primo Basílio (1878) notou-se a sombra tutelar de Madame Bovary, mas Emile Zola julgou que era superior ao seu indiscutível arquétipo e juntou à sua sentença estas palavras : " Fala-lhes um discípulo de Flaubert."

Cada oração que Eça de Queirós publicou fora limada e temperada, cada cena da vasta obra múltipla foi imaginada com probidade. O autor define-se como realista , mas esse realismo não exclui o quimérico, o sardônico, o amargo e o piedoso. Como o seu Portugal, que amava com carinho e com ironia, Eça de Queirós descobriu e revelou o Oriente. A história de O Mandarim ( 1880) é fantástica. Uma das personagens é um demônio; a outra , a partir de uma sórdida pensão de Lisboa, mata magicamente um mandarim que lança o seu papagaio de papel num terraço que fica no centro do Império Amarelo. A mente do leitor hospeda com alegria essa impossível fábula.

No ano final do século XIX, morreram em Paris dois homens de gênio, Eça de Queirós e Oscar Wilde . Que eu saiba, nunca se conheceram, mas ter-se-iam entendido admiravelmente."
Jorge Luis Borges, "Biblioteca Pessoal"

*Quando morreu , Jorge Luis Borges já tinha escrito os prólogos dos primeiros 64 títulos de uma série de cem que haveria de constituir uma coleção, a súmula das suas preferências literárias - a sua biblioteca pessoal. "Desejo que esta biblioteca seja tão variada quanto a curiosidade que a mesma induziu em mim"

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