terça-feira, outubro 16

Um pouco de James Joyce

Era tarde quando eu peguei no sono. Apesar de estar com raiva do velho Cotter por se referir a mim como uma criança eu fiquei revirando a cabeça para extrair algum sentido daquelas frases entrecortadas. No escuro do quarto imaginei que estava vendo de novo o rosto cinza e pesado do paralítico. Puxei os cobertores para cima da cabeça e tentei pensar no Natal. Mas o rosto cinza ainda me seguia. E murmurava; e eu entendi que ele desejava confessar alguma coisa. Sentia a minha alma se recolher a alguma região gostosa e má; e lá mais uma vez ele estava me esperando. Começou a se confessar comigo numa voz murmurante e eu fiquei pensando por que o rosto sorria continuamente e por que os lábios estavam tão úmidos de saliva. Mas aí lembrei que ele tinha morrido de paralisia e senti que eu também estava sorrindo bem de leve como que para absolver o simoníaco do seu pecado.

Na manhã seguinte depois do café eu fui dar uma olhada na casinha da Great Britain Street. Era uma lojinha discreta, registrada com o vago nome de Armarinho. O armarinho consistia basicamente de galochas de criança e guarda-chuvas; e em dias normais ficava uma placa na janela, que dizia: Recobrimos guarda-chuvas. Agora não se viam placas pois as persianas estavam baixadas. Um buquê de luto estava atado à maçaneta com fita. Duas mulheres pobres e um mensageiro de telegrama liam o cartão preso ao crepe. Eu também me aproximei e li:
Primeiro de julho, 1895
Rev. James Flynn (anteriormente da igreja de Sta. Catarina,Meath Street),sessenta e cinco anos de idade.Descanse em Paz
Ler o cartão me convenceu de que ele estava morto, e foi incômodo perceber que eu estava sem rumo. Se ele não estivesse morto eu teria subido até o quartinho escuro atrás da loja para encontrá-lo sentado na sua poltrona junto da lareira, quase sufocado pelo casacão. Talvez eu chegasse com um pacote de High Toast que a tia mandou para ele e esse presente o fizesse sair daquele sono pasmado. Era sempre eu quem esvaziava o pacotinho na caixa de rapé porque as mãos lhe tremiam demais para ele fazer isso sem derramar metade pelo chão. Mesmo quando ele erguia a mão enorme e trêmula até o nariz umas nuvenzinhas de fumo escorriam por entre os seus dedos e caíam no peito do casaco. Podem ter sido essas chuvas constantes de rapé que deram às suas antigas roupas sacerdotais aquela aparência verde desbotada, pois o lenço vermelho, preto, como sempre, por causa de manchas de rapé de uma semana, com que ele tentava varrer os grãos caídos, era praticamente inútil.

Eu queria entrar e dar uma olhada nele, mas não tinha coragem de bater. Fui me afastando pelo lado da rua que estava no sol, lendo todos os anúncios teatrais nas vitrines enquanto andava. Achei estranho que nem eu nem o dia parecíamos estar de luto e me senti até irritado por descobrir em mim uma sensação de liberdade como se a morte dele tivesse me libertado de alguma coisa. Fiquei espantado com isso porque, como o tio tinha dito na noite anterior, ele tinha me ensinado muito. Tinha estudado no colégio irlandês em Roma* e me ensinado a pronunciar latim direito. Tinha me contado histórias das catacumbas e de Napoleão Bonaparte, e me explicado o significado das diversas cerimônias da Missa e das diferentes vestes que o padre usa. Às vezes ele se divertia me fazendo perguntas difíceis, perguntando o que a gente devia fazer em certas circunstâncias ou se esse ou aquele pecado era mortal ou venial ou só uma imperfeição. As perguntas dele me mostravam o quanto eram complexas e misteriosas certas instituições da Igreja que eu sempre tinha considerado serem os atos mais simples. Os deveres do padre para com a Eucaristia e para com o segredo do confessionário me pareciam tão sérios que me espantava que alguém tivesse achado em si a coragem de enfrentá-los; e eu não me surpreendi quando ele me disse que os pais da Igreja tinham escrito livros da grossura do Diretório postal e com uma letra tão miudinha quanto a dos anúncios jurídicos no jornal, para elucidar todas aquelas questões complicadas. Muitas vezes quando pensava nisso eu não conseguia achar nenhuma resposta ou só uma bem boba e hesitante, quando então ele sorria e fazia que sim com a cabeça duas ou três vezes. Às vezes ele me fazia repetir os responsórios da Missa, que tinha me feito decorar; e, enquanto eu titubeava, ficava sorrindo pensativo e fazendo que sim, vez por outra metendo imensas pitadas de rapé nas narinas, uma de cada vez. Quando sorria ele revelava uns dentes enormes e descoloridos e deixava a língua apoiada no lábio inferior — um costume que me deixou incomodado nos primeiros tempos antes de eu o conhecer melhor.

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