quinta-feira, outubro 11

Escritores recordam quais eram suas leituras favoritas quando crianças

No último domingo, eu reli "A força da vida", de Giselda Laporta Nicolelis, que era meu livro favorito quando criança. Não me lembrava de quase nada além do título do livro e do nome da autora. Lembrava só que era uma história com gente pobre, um palhaço e uma escola. E que era muito triste. Tão triste que mostrei o livro a minha mãe, que leu e concordou comigo: era, de fato, um livro muito triste. Reli o livro quase como um detetive, tentando reconstituir minha leitura infantil e descobrir o que naquelas poucas páginas impressionou tanto o menino que fui. Como pude me esquecer da história e dos personagens, mas não da tristeza (e da raiva) que eu senti?

"A força da vida" conta a história de Edileusa, uma menina de 10 anos que mora com mãe, Zefa, e seus cinco irmãos numa favela. Edileusa não vai à escola porque precisa cuidar da casa e dos irmãos menores enquanto a mãe trabalha. Zefa é lavadeira. Uma das poucas diversões da vida de Edileusa é assistir às apresentações de Borzeguim, um palhaço aposentado que faz a alegria das crianças da favela.

Em minha releitura, chamou minha atenção um diálogo entre Edileusa e a mãe. A menina quer ser artista, mas Zefa, amorosa e cansada, tenta dissipar os sonhos da filha:

– Deus te ouça, filha – sorria triste a Zefa. – Pobre não tem muita escolha, não.

– Todo mundo tem escolha, mãe, é só se revoltar...

– Ah, filhinha – os olhos da mãe se encheram de lágrimas –, se revolta, não. Fica enfezada, com raiva enrustia. Tenha esperança, mas não seja revoltada.

– Pois eu sou sim, mãe – respondia a Edileusa, o rosto pegando fogo. – E vou continuar sendo. Porque é dessa revolta toda que eu vou ser alguma coisa na vida.

Não consigo pensar em lição mais valiosa a ser ensinada por um livro infantil.

***
Na próxima sexta-feira, 12 de outubro, comemora-se o Dia das Crianças. Por isso, convidei cinco escritores brasileiros (e um português que é quase brasileiro) para contar quais as leituras infantis de que eles se recordam com mais carinho.

João Anzanello Carrascoza, autor de "Aos 7 e aos 40" (Companhia das Letras) e outros
Tão logo aprendi a ler, aos 7 anos, em Cravinhos, interior de São Paulo, no início dos anos 70, comecei a retirar livros da biblioteca da escola, por meio dos quais mergulhava nos mais distintos universos ficcionais — a antiga Pérsia, a França do século XIX, o Brasil contemporâneo e rural. Foi assim que conheci a obra de José Mauro de Vasconcelos que, à época, fazia sucesso com o romance "Meu pé de laranja lima". Na falta desse livro, encontrei outro, do mesmo autor: "Coração de vidro". Lembro-me de que esse “coração” reunia quatro histórias autônomas, mas que formavam uma única pelo entrelaçamento de personagens. A que mais me afetou foi a última, “Árvore”, sobre um menino que amava uma mangueira; ele passava os dias enroscado em seus galhos, onde se sentia menos só, e, no entanto, quando adulto, permitira que a cortassem. Marcou-me, sobretudo, a cena final, em que o menino-homem apoia um dos pés sobre o toco (o que restou da árvore) para amarrar o sapato. Esse episódio me entristeceu — eu também era um garoto entre mangueiras — e não apenas marcou minha história como leitor, mas igualmente como escritor: meus livros são povoados de árvores, meninos e homens, que, para afastar o espanto da existência, buscam comungar sua inevitável solidão.
Luis Fernando Verissimo, autor de "As mentiras que os homens contam" (Objetiva) e outros
Como, imagino, metade da população infantil brasileira de minha época, gostava muito do Monteiro Lobato e suas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, mas a lembrança mais cálida que tenho é do "Aventuras do avião vermelho", que eu ‘li’ muitas vezes, mesmo antes de saber ler. O livro tinha sido escrito por meu pai, mas o Fernando da história não sou eu, que ainda não tinha nascido. De qualquer maneira, identifiquei-me com o herói e fui em muitas das aventuras de seu avião vermelho. De carona.
Marcelo Ferroni, autor de "Fogo na floresta" (Companhia das Letras) e outros
Devia ter uns 7 anos quando folheei a primeira história do Tintim. Era um "Tintim na América" de meus primos, com algumas páginas recortadas, outras rabiscadas por cima. Os desenhos, os índios, os gângsteres, tudo isso me puxou para a aventura. Foi aí que comecei a gostar de histórias (e arrisquei umas próprias). Sei quase de cor O segredo do Licorne e sua continuação, O tesouro de Rackham, o Terrível. Pergaminhos escondidos nas miniaturas de três caravelas, que, juntos, revelam o mapa do tesouro; o heroico destino do cavaleiro de Haddock, antepassado do Capitão; a expedição a uma ilha misteriosa; o submarino em formato de tubarão do professor Girassol; Dupont e Dupond fantasiados de lobos do mar; garrafas de rum na caravela afundada e o capitão, obviamente, bêbado (hoje teria de viver com água de coco). Flibusteiros! Ectoplasmas! Sátrapas! Por fim, a busca pelo tesouro do outro lado do mundo, para só então descobrirmos que ele estava todo o tempo ali, no Castelo de Moulinsart, bem debaixo de nosso nariz.
Milton Hatoum, autor de "Dois irmãos" (Companhia das Letras) e outros
As palavras mais fantasiosas de minha infância não foram lidas, e sim ouvidas. Eram histórias contadas pelos mais velhos, principalmente pelo meu avô materno, um imigrante libanês. Esse narrador, um pouco teatral com seus gestos enfáticos, conduzia as crianças da casa a viagens pelo Oriente e Amazonas. Anos depois, descobri que as viagens ao Cairo, a Bagdá e a outras cidades da África e da Ásia eram versões livres do Livro das mil e uma noites. Li também histórias em quadrinhos (gibis), Monteiro Lobato e a coleção enciclopédica Tesouro da juventude. O livro mais fascinante foi lido na fronteira da infância com a juventude: Treasure Island (A ilha do tesouro, de Robert Louis Stevenson). Foi uma leitura amorosa — e também morosa nas muitas aulas de inglês com a professora Jane Hern. Talvez ela fosse de origem escocesa. Em todo caso, essas aulas inesquecíveis numa casa espaçosa e ajardinada do bairro Adrianópolis inspiraram minha crônica “Lições de uma inglesa”. Eu era um pouco mais novo do que o adolescente Jim Hawkins, o narrador do romance. Perguntava a Mrs. Hern como uma pessoa tão jovem tinha conseguido escrever um romance com palavras tão difíceis. Ingenuamente, eu confundia o narrador com o escritor. Nunca me esqueci do violento pirata Black Dog, do correto capitão Smollett e de um dos companheiros de Jim: Tom Redruth, assassinado por um pirata e enterrado solenemente na ilha. A aventura marítima em busca de um tesouro é também uma aventura através da alma humana e de seus atributos: ganância, traição, violência, amor, compaixão. Para um menino do Amazonas, que vivia longe do mar, a leitura do livro de Stevenson foi uma inesquecível viagem ao desconhecido, como são os bons romances.
Noemi Jaffe, autora de "O que os cegos estão sonhando?" (Editora 34) e outros
Um de meus livros preferidos da infância, por volta dos 7 anos, era "O menino do dedo verde", de Maurice Druon. A história toda se passa na cidade de Mirapólvora (nome que eu adorava), com um menino chamado Tistu, cujo pai possui uma fábrica de canhões. Como são ricos, o garoto possui tudo de que precisa e ainda mais do que o necessário. Mas quando o levam para a escola, ele não consegue se adaptar, dormindo nas aulas ou sem conseguir se concentrar, o que leva a sua expulsão. Com a família envergonhada, o pai, de índole prática, decide que Tistu aprenderá com a vida, pensamento típico de um negociante. Mas, para a surpresa do pai, a primeira lição do menino é com o jardineiro Bigode, que, quando vai ensiná-lo a plantar, descobre que ele tem o polegar verde, ou seja, seu dedo faz as plantas crescerem e desabrocharem. Tistu não tem um talento explícito, mas sim um conhecimento secreto e misterioso, que ninguém perceberia se não fosse por Bigode, um homem simples. Ele não corresponde ao sonho do pai de tornar-se um empresário de canhões, mas descobre em si mesmo algo que o faz feliz. Eu me identificava muito com esse “gênio” invisível e com a inadaptação de Tistu ao ambiente escolar e familiar e ficava buscando, em mim, algo mágico que também me tornasse especial. Acho que até hoje estou procurando.
Valter Hugo Mãe, autor de "O filho de mil homens" (Biblioteca Azul) e outros
Meus primeiros livros foram do Alfred Hitchcock. Marcaram muito minha cabeça. Duas histórias para adolescentes com títulos sensacionalistas e perigosos: O segredo do castelo do terror e O mistério da múmia sussurrante. Julgo que fascinei pelo medo. Estava muito acostumado a ter medo, precisava entendê-lo. Para minha frustração, ambas as aventuras acabavam resolvidas pela racionalidade. Eu queria mais fantasia. Queria muito que fantasmas existissem e outras bizarrias menos nomeadas ainda. De todo o modo, a tensão era a chave. Isso de cada palavra, cada frase, contribuir para uma densidade inquebrável, um contínuo de ansiedade, era uma maravilha. Quis, quero ainda, que todos os livros se façam de uma energia sem quebras, fortes e um pouco impiedosos em sua doçura ou amargura. Com Hitchcock ficou para sempre o gosto de analisar o conflito, aquilo que parece real e não é, e, ao mesmo tempo, aprender o inexplicável. Prefiro que muita coisa seja inexplicável. Penso agora, enquanto escrevo, que me tornei num escritor assim porque quero, em minha cabeça, corrigir os livros de minha infância. Ou seja, obrigar o castelo a ser assombrado por fantasmas genuínos e fazer com que as múmias de verdade murmurem. Seria insuportável presenciar, é fundamental que a Literatura o faça. A Literatura é para saber tudo, sobretudo o impossível.
Ruan de Sousa Gabriel

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