quarta-feira, novembro 28

Ai, madre, moiro de amor

Passei a noite a sonhar com cantigas de amor e cantigas de amigo, feliz de ter nascido nesta nossa língua portuguesa, cujo som me lembra o do vento em setembro, na Beira Alta, quando eu era pequeno e tudo parecia cantar, os pinheiros, o granito, a erva, a serra ao longe, o burro da nora às voltas, às voltas, e eu dentro daquele milagre de sons enquanto o correio das seis passava lá em baixo.

Que saudades da minha avó a chamar-me

– Filho

à janela, do meu pai a fumar na varanda para a serra, dos bandos de pássaros que só voltariam para o ano e eu sentado numa pedra no pinhal do Zé Rebelo, a assistir à chegada das primeiras nuvens do outono. Os Quatro Caminhos, velhas de luto, um cão magríssimo que não dava por mim, trotando sem pressa a pensar, a pensar. Muito pensam os cães, não é, muito pensam os cães. Muros de pedra vã. Um lagarto quieto, numa atitude de arranque. Os primeiros assobios secretos do vento. O meu avô, de casaco de linho, a olhar os castanheiros, a minha mãe tão nova. Os surpreendentes olhos azuis do meu irmão Miguel, as extraordinárias covinhas nas bochechas do seu sorriso. A Senhora Dona Lucrécia sentada no alto das escadas, em silêncio, imóvel, e eu, não sei porquê, cheio de medo dela: se por acaso me olhasse lá de cima desatava a fugir. E uma voz muito distante de mim no meu ouvido sempre:

Ai madre, moiro de amor

enquanto o Mondego

(que bonita palavra, Mondego)

Susa Monteiro

nascia num fiozinho, na serra, a tropeçar, coitado, a tropeçar. E o cheiro da vinha, as pipas que levavam as uvas, um par de bois enormes a puxarem aquilo. Que esquisito ser bicho, que esquisito ser pessoa também, tomar banho numa selha, mover a bomba da água: o Vergílio parava a carroça sempre ao lado do poço, às vezes deixava-me pegar um bocadinho na rédea, o João não tinha medo das vespas. A cozinha sempre quente, e grande e escura.

Querer eu em maneira de provençal
fazer um cantar de amigo

O Pedro a abrir castanhas com uma pedra sobre outra pedra. À tarde vinham buscar a Dona Lucrécia da varanda, ao colo. Ciganos de bigode que não cumprimentavam a gente vendiam na feira mulas, roupa, no largo a seguir à Igreja de São Miguel. O senhor vigário jogava as cartas ao domingo, sob a latada, a empregada dele para nós

– Meninos meninos

a oferecer-nos figos e eu não sabia o que pensar. A minha avó comprou-me um caderno no senhor Casimiro para eu escrever lá dentro. O meu pai

– Mostra cá

e devolvia-me aquilo em silêncio, intrigado

Ai eu coitada
como vivo em grã cuidado

e então a noite começava devagarinho, insectos, sombras, as primeiras luzes da serra. O meu medo do escuro porque tantos sons secretos sempre, um galho contra o nosso postigo, a bater, a bater, pessoas crescidas no andar de cima, o meu avô em silêncio sempre: como não ouvia equilibrava um sorriso vago na boca. Nunca falou conosco e gostava de trovoadas, ia para a varanda assistir aos relâmpagos. A gente tratava-o por Avô Dois, o Avô Um era o pai do meu pai, lia livros gordos, coisas de guerras. Explicaram-me que ficou surdo numa delas, em França, porque apanhou gases nas trincheiras. Não perguntei o que significavam gases, o que significavam trincheiras. Lia o jornal também, que íamos buscar ao meio dia, à estação dos comboios. No jornal havia sempre uma página cheia de retratos com cruzes em cima, ou seja pessoas que moravam debaixo da terra, num lugar ao lado da Igreja. Não, a sério, o que seria a morte?

Querer eu em maneira de provençal
fazer um cantar de amigo

e depois acordei. Aqui. Feliz de ter nascido nesta nossa língua portuguesa. Se me passar pela veneta chegar à porta agora estou na Beira outra vez. E pode ser que encontre um miúdo loiro a atazanar um sapo com um pedaço de cana. Porque é setembro. O mês em que nasci, o mês em que não páro de nascer.

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