terça-feira, novembro 20

Kamala

- Eu sou Kamala.
O som da sua própria voz pareceu-lhe romper o encanto que a dominava, e estremeceu toda, deixando cair a cabeça sobre o peito sem poder dar um passo, se bem que a fuga lhe parecesse a única salvação possível. Tinha despendido toda a sua força naquelas três palavras; não lhe ficou nenhuma para suportar a sua vergonha. Estava à mercê de Nalinaksha, estava à mercê da sua bondade.
Lentamente, Nalinaksha levou as mãos de Kamala aos lábios, e disse-lhe: 

- Eu sei! 

Atraiu-a a si, pôs-lhe ao pescoço uma das grinaldas que ela tinha entrelaçado no dia anterior, e murmurou: 

- Inclinemo-nos diante d'Ele... 



Enquanto os dois, lado a lado, tocavam com as frontes o branco pavimento de mármore, o Sol da manhã abençoou-lhes as cabeças inclinadas. 

Erguendo-se, Kamala prosternou-se uma vez mais diante de Nalinaksha. A sua penosa timidez tinha-a abandonado. A sua alegria nada tinha de exuberante, mas sentia-se invadida por uma calma infinita. Cada recanto do seu coração estava cheio de um sentimento absoluto de dedicação, e pareceu-lhe que oferecia, com o seu respeito, a sua vida inteira. De repente, as lágrimas jorraram dos seus olhos, brotadas de uma fonte desconhecida: eram as lágrimas da alegria submergindo por completo a lembrança dos desgostos passados. 

Não lhe falou mais, e, depois de ter desviado da jovem fronte os cabelos ainda húmidos, o marido saiu do escritório. 

Kamala entregou-se aos seus trabalhos quotidianos, como se se entregasse ao serviço de um deus. A tarefa mais ínfima representava para ela uma prece, subindo ao céu na mais confiante alegria. Ao cair da tarde, Nalinaksha entrou no quarto de Kamala com uma braçada de grandes flores de aruns.
- Kamala – disse ele –, põe estas flores na água para as conservar frescas: esta noite iremos pedir a bênção a nossa mãe. 

- Mas – disse ela timidamente – eu não vos disse nada... 

- Eu sei tudo. 

Kamala, corando, velou o rosto com o sari... 
Rabindranath Tagore , "O Naufrágio"

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