sábado, novembro 3

Moço de cego

Dos nove aos onze anos, o José Pais foi moço de cego. Sua mãe, que estava carregada de filhos e não tinha um palmo de terra onde cair morta, dera-o por uma malga de feijões para os dois manos da Aldeia de Nacomba, que andavam no peditório. Aprendeu a moina... e disse. Eram uma gente cainha de todo, dobrados sobre a própria miséria, tão futres que, tantos dias que passou com eles, nem uma carapuça lhe compraram.

Gémeos e feridos desde nascença de gota serena, iam de povo em povo cantando e tocando, ele rabeca, ela violão. Armavam nos largos e à boqueira dos pátios a zanguizarra, e recolhendo o cinco reizinhos aqui, o coirato acolá, uma côdea nesta porta, duas cebolas naquela, lá iam acalentando os dias.

O José Pais carregava com o bornal e guiava-os pelos tortuosos caminhos de Cristo, tendo cuidado que não tropeçassem nas pedras ou metessem os pés nos charcos. Marchavam em bicha como se fossem engatados: o moço na dianteira, descalço e roto; o cego, de tabardo de burel, a mão no ombro do moço; a cega, de vasquinha escarlata, a mão no ombro do irmão e instrumento para as costas, tal o escudo dum peltasta.

No estio esta vida airada não era a pior de todas. Sempre havia que imolar, pomos e cachos em suspensão dos taludes, o fundo das caçoilas a varrer pelas malhadas e os restos dos farnéis pelas romarias. O José Pais, sacudido para fora do regaço materno superpovoado, como sucede nos ninhos de certas aves quando os filhos são muitos, tirava o ventre de misérias. A melhor bocada, de resto, ia ao direito para o fole do gato, que ali era ele, o lazarilho, tão ágil de garra como ladino de olho.

— Que deram em casa da senhora Micas brasileira? — perguntava o cego.

— Duas dentadas de broa tão rijas que só o Diabo as pode tragar.

— Deixa ver, menino...

O José Pais afundia a mão no taleigo e, como lá houvesse de tudo, apartando o pão fresco e folhado, arrancava o pedaço mais bolorento e empedernido.

— Já não há caridade! — gemia o velho.

Rodando para outra porta, não cessava de rosnar:

— Quanto mais santanários, mais fonas. Se Cristo tornasse a este mundo, morria de larica!

Pernoitavam a talhe de mão, umas vezes nos cabanais quentes dos poviléus, outras vezes, surpreendidos pelo temporal, nas cortes da serra de mistura com o gado. Altas horas, o José Pais erguia-se do grabato, muito sorrateiro, e a rastos como a giboia chegava-se às cabras. Assim que palpava um úbero bem repleto, punha-lhe os beiços e sugava, sugava até à última gota. Depois desse, outro. Voltava à cama refarto, a cheirar-se ele próprio a menino de mama, pesadão, para mergulhar numa soneira de que só acordava aos safanões.

Os cegos sabiam trovas de todo o género, umas que faziam rir, outras chorar. Cantavam o rimance do sapateiro que fora entregar a obra aos fregueses e à volta apanhara a mulher a cear com um frade, e as bocas escancaravam-se até às orelhas e as risadas caíam das queixadas, estrepitosas como espadanas em cima do linho. Mas lá vinha a história do filho a quem a amiga pediu o coração da mãe, se queria dormir com ela, e os olhos vidravam-se de lágrimas.

O José Pais gostava pouco daquelas cantorias. A voz dos dois cegos, como se fizesse coro com as órbitas revolcando-se brancas, vazias e absurdas nas capelas ramelosas, soava a outro mundo. Parecia-lhe ouvir o acompanhamento dos defuntos no traço da porta dos cemitérios. Tinha também a plangência dos ralos que cantam de noite debaixo da terra. Estava morto por despegar.

Um dia, o cego apanhou-o enliçado no sono e passou-lhe revista aos bolsos. No fundo da algibeira das calças, dentro dum trapo, encontrou-lhe o tesoiro, dinheiro escamoteado moeda a moeda, desde o primeiro dia. Enquanto o sujeitava contra o solo com a mão esquerda, com a direita zurziu, zurziu sem dó nem piedade. A cega, em vez de lhe valer, açulava o algoz:

— Mata, mata-me esse ladrão!

No mesmo dia abalou. Estava farto da bordoada, daquela macarena azarenta, dos padre-nossos dos cegos entremeados de pragas:

oxalá que vos caia a casa em cima e vos esborrache a todos! Que ainda hoje comam lume no inferno!

da vida de cão, umas vezes molhado até o umbigo, outras a estorricar com a soalheira.

Pois que a mãe o não queria em casa — todas as tetas duma porca não chegavam para os irmãos, cada um de seu pai — foi procurar amo.

Ajustou-se na azenha dum moleiro que tinha fama de mau e ladrão.
Aquilino Ribeiro, "Caminhos Errados" 

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