sexta-feira, maio 5

O velho

O que eu mais temo não é o Sono Eterno, mas a possibilidade de uma insônia eterna, o que seria uma verdadeira estopada, um suplício sem fim. Porém, em uma das minhas costumeiras noites de sonho acordado, o meu amigo morto me pediu um cigarro e disse-me:

- Não é como tu pensas, todos nós trabalhamos numa série infinita de escritórios (cada geração de mortos num deles), onde a gente se entrega a um trabalho de estatística: tem-se de anotar a chegada de cada um e comunicar-lhe o respectivo número, pois isso é de mera convenção terrena. O pior são os que atrapalham a escrita, morrendo antes do tempo, ou porque se mataram ou por culpa dos médicos, e estes ainda são culpados quando fazem os doentes morrer depois da hora, numa espécie de sobrevida artificial, já que os médicos (diga-se em sua honra) julgam criminosa a prática da eutanásia... Uma pena!

- E fora do expediente, o que vocês fazem?

- Bem, a hora do almoço não deixa de ser divertida por causa dos Santos: põem-se a discutir acaloradamente qual deles fez na Terra o maior número de milagres e outras futilidades.

- E nos serões, eles jogam prenda?

- Mais respeito, seu vivo! Bem! Nos serões eles fazem concursos para ver quem é que diz de cor mais versículos da Bíblia. Uma bobagem! Todo mundo sabe que o único que sabe a Bíblia de cor, tintim por tintim, é o Diabo.

- E Deus? Me conta como é Ele...

- Ah, o Velho? Desconfio que certa vez O vi...

- Só certa vez? Mas Ele não está sempre no Céu?

- Bem, tu deves compreender que Ele se preocupa principalmente com os vivos. O Velho está quase sempre é na Terra, lidando com os assuntos humanos. Ele e o Diabo. Sim, os dois vivem a maior parte do tempo na Terra.

- Ora, eu pensava que vocês soubessem mais do que nós... Mas conta-me lá como foi que desconfiaste de ter visto o Velho?

- Foi há tempos, eu era recém-chegado, quando uma tarde apareceu de surpresa no escritório um velhinho muito simpático. Com as mãos às costas, curvava-se sobre cada mesa, inspecionando o nosso trabalho, por sinal me atrapalhei, errei uma palavra. Ele bateu-me confortadoramente no ombro, como quem diz: “Não foi nada... não foi nada...”. Ao retirar-se, já com a mão no trinco da porta, virou-se para nós e abanou: “Até outra vez, se Eu quiser!”.
Mario Quintana, “Sapato Furado”

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