sábado, dezembro 20

Sir Hercules

O garoto destinado a tornar-se o quarto baronete do clã dos Lapith nasceu no ano de 1740. Era um bebê bem pequeno, pesando não mais que um quilo e meio, mas desde o princípio apresentou-se forte e saudável. Em homenagem a seu avô materno, Sir Hercules Occam — nome de família Occam, como o do bispo —, foi batizado Hercules. Sua mãe, como muitas outras mães, tinha um caderno onde anotava seus progressos a cada mês. Ele andou aos dez meses, e antes de completar seu segundo ano já aprendera a falar algumas palavras. Aos três anos pesava apenas dez quilos e oitocentos, e aos seis, embora soubesse ler e escrever perfeitamente e demonstrasse notável talento para a música, não era maior nem mais pesado do que uma criança de dois anos bem desenvolvida. Sua mãe tivera mais dois filhos, um menino e uma menina, sendo que um deles morreu de crupe ainda bem novo, ao passo que o outro teve a vida ceifada pela varíola antes de chegar aos cinco anos. Hercules foi o único filho que sobreviveu.


Em seu décimo segundo aniversário, Hercules ainda tinha apenas noventa e cinco centímetros de altura. A cabeça, bela e de formato nobre, era grande demais para o corpo; não obstante, ele era maravilhosamente proporcionado e, haja visto seu tamanho, dotado de muita força e agilidade. Os pais, na esperança de fazê-lo crescer, consultaram todos os mais famosos médicos da época. As suas várias receitas eram seguidas à risca, porém em vão. Um deles ordenou uma dieta farta; outro, ginástica; um terceiro construiu uma pequena barra, copiada das usadas pela Santa Inquisição, na qual o jovem Hercules era esticado, em meio a tormentos cruciantes, durante meia hora, todas as manhãs e todas as noites. Durante os três anos seguintes, Hercules ganhou talvez cinco centímetros. Depois disso seu crescimento cessou completamente, e pelo resto da vida ele permaneceu um pigmeu de um metro. O pai, que acalentara as esperanças mais extravagantes em relação ao filho, planejando para ele, em sua imaginação, uma carreira militar igual à de Marlborough, tornou-se um homem frustrado. “Trouxe um aborto para o mundo”, dizia, e criou tal horror ao filho que o garoto mal ousava apresentar-se a ele. Seu temperamento, até então sereno, transformou-se em morosidade e selvageria pela decepção. Evitava companhias (tendo vergonha de mostrar-se, dizia, sendo o pai de um lusus naturae entre seres humanos normais e saudáveis) e começou a beber sozinho, o que depressa o levou à sepultura; pois um ano antes da maioridade de Hercules o pai foi levado por uma apoplexia. A mãe, cujo amor por ele crescera com o aumento da crueldade do pai, não sobreviveu muito tempo e sucumbiu pouco mais de um ano depois da morte do marido, de um ataque de febre tifoide, depois de comer duas dúzias de ostras.

Assim sendo, Hercules encontrou-se aos vinte e um anos sozinho no mundo, dono de uma fortuna considerável, inclusive a propriedade e a mansão de Crome. A beleza e a inteligência de sua infância perduraram na idade adulta, e, a não ser pela estatura anã, ele teria tomado seu lugar entre os mais belos e dotados jovens de seu tempo. Tinha um bom conhecimento dos autores gregos e latinos, assim como dos modernos de algum mérito que escrevessem em inglês, francês ou italiano. Tinha bom ouvido para a música e não era um intérprete medíocre no violino, que costumava tocar como um violoncelo, sentado numa cadeira com o instrumento entre as pernas. Tinha grande predileção pela música do cravo e do clavicórdio, mas o tamanhinho de suas mãos tornava-lhe impossível tocar esses instrumentos. Mandou fazer uma pequena flauta de marfim, na qual, sempre que estava melancólico, costumava tocar uma ária ou uma giga simples, afirmando que essa música rústica tinha mais poder de iluminar e levantar o espírito do que as mais sofisticadas e artificiosas produções dos mestres. Desde criança praticava a composição poética mas, embora cônscio de seus grandes poderes nessa arte, não publicava sequer uma amostra de seus escritos. “Minha estatura está refletida em meus versos”, costumava dizer. “Se o público os lesse, não seria porque sou poeta, mas porque sou anão.” Vários livros manuscritos de poemas de Sir Hercules sobreviveram. Uma única amostra será suficiente para ilustrar suas qualidades como poeta.

Nos tempos antigos, enquanto o mundo era ainda jovem, Antes que Abraão alimentasse seus rebanhos ou Homero cantasse; Quando o ferreiro Tubal domou o fogo criativo,
E Jabal morava em tendas e Jubal tocava a lira;
A carne corrompida criou um nascimento monstruoso
E gigantes obscenos caminhavam na terra que encolhia, Até que Deus, impaciente com sua progênie,
Liberou sua cólera e afogou-os no Dilúvio. Proliferando novamente, a Terra repovoada faz nascer O Herói rústico e o Guerreiro;
Altas torres de Músculo, encimadas por uma Caveira vazia, Estupidamente corajosos, heroicamente tolos.
Longas eras se passaram, e o Homem refinou-se, Fraco em música e de Mente mais vasta,
Sorriu à espada de seus antepassados, arco e alabarda, E aprendeu a manejar o Lápis e a Pena.

A tela brilhante e a página escrita
Imortalizaram seu nome por muitas eras,
Seu nome embrasonado na parede do templo da Fama; Pois a Arte cresceu tanto quanto a Humanidade diminuía. Assim passo a passo traçamos o longo progresso do homem Morre o Gigante, o herói toma seu lugar;
O Gigante vil, o estúpido herói tolo:
Um nos assusta e do outro zombamos.
O homem aparece afinal. Nele a pura chama da Alma Arde mais brilhante em uma moldura não extravagante.
Antigamente, quando os Heróis lutavam e os Gigantes enxameavam, Os homens eram enormes montes de matéria mal informada; Cansado de fermentar uma massa tão vasta,
O espírito dormiu e toda a mente era crassa. A carcaça menor desses dias mais recentes É logo formada; a Alma descansada brinca
E como um Farol arremessa longe seus raios mentais. Mas podemos pensar que a Providência vai amparar Os passos do Homem aqui no caminho ascendente? A Humanidade, em compreensão e em graça Avançou tanto além da raça dos Gigantes?
Fora, pensamento ímpio! Ainda guiado pela própria Mão de DEUS, A Humanidade prossegue em direção à Terra Prometida.
Chegará um tempo (profético, eu avisto
Alvoradas mais remotas ao longo do céu sombrio), Quando felizes mortais de uma Era Dourada
Vão tornar a virar a escura página da História,
E em nossa jactanciosa raça de Homens contemplar Uma forma tão rústica, uma Mente tão morta e fria
Como as que vemos nos Gigantes, nos Guerreiros de outrora. Chegará um tempo em que a Alma será
De toda a matéria supérflua libertada:
Quando o corpo leve, ágil como o de um cervo, Brincará com graça ao longo dos gramados aveludados. Delicadíssima e definitiva progênie da Natureza,
A Humanidade aperfeiçoada possuirá a terra.
Porém, ah, não ainda! Pois ainda a raça dos Gigantes, Enorme, embora diminuída, pisoteia na bela face da Terra; Estúpidos e repulsivos, no entanto perversamente orgulhosos, Os homens se jactam em voz alta de suas imperfeições.
Vaidosos de sua corpulência, de tudo o que ainda possuem Da feiura gigantesca absurdamente vaidosos;
A tudo o que é pequeno eles voltam sua zombaria estúpida E, monstros, julgam-se nascidos divinamente.
Triste é o destino desses, ah, realmente triste, Os raros precursores da raça mais nobre!
Que chegam para predizer a glória dourada do homem,
Mas que, apontando para o Céu, vivem eles próprios no Inferno.

Tão logo tomou posse de sua fortuna, Sir Hercules pôs-se a substituir a criadagem. Pois, embora nem um pouco envergonhado de sua deformidade — na verdade, se podemos julgar pelo poema acima transcrito, ele se considerava em muitos aspectos superior à raça comum de homens —, achava embaraçosa a presença de homens e mulheres crescidos. Percebendo, também, que devia abandonar todas as ambições no grande mundo, resolveu retirar-se totalmente dele e criar, por assim dizer, um mundo particular em Crome, no qual tudo seria proporcional a ele. Assim, despediu todos os antigos empregados da casa e substituiu-os, pouco a pouco, quando conseguia encontrar sucessores apropriados, por outros de estatura anã. Ao longo de seus poucos anos reunira à sua volta uma numerosa criadagem da qual nenhum membro tinha mais de um metro e vinte de altura e o menor deles mal alcançava setenta centímetros. Os cachorros de seu pai — setters, mastins, galgos e uma matilha de beagles — ele os vendeu ou deu, por serem grandes e impetuosos demais para sua casa, substituindo-os por pequenos pugs, spaniels e quaisquer outras raças de porte diminuto. A cavalariça do pai também foi vendida. Para seu uso próprio, seja cavalgando ou dirigindo uma carruagem, ele tinha seis pôneis shetland pretos e quatro animais malhados da raça de New Forest escolhidos a dedo.

Tendo assim ajeitado seu ambiente doméstico a seu gosto, só lhe restava encontrar uma companhia apropriada com quem compartilhar esse paraíso. Sir Hercules tinha o coração sensível, e mais de uma vez, entre os dezesseis e os vinte anos, sentira o que era estar apaixonado. Mas aí sua deformidade fora fonte de amaríssima humilhação, pois, ousando declarar-se certa feita a uma jovem de sua escolha, foi recebido com risos. Tendo ele insistido, ela o erguera e o sacudira como a uma criança desagradável mandando-o sumir e não incomodá- la mais. A história logo se espalhou — na verdade, a própria jovem costumava contá-la como uma anedota muito divertida —, e o escárnio e a zombaria por ela ocasionados tornaram-se fonte de aguda tristeza para Hercules. Dos poemas escritos nessa época deduzimos que lhe ocorreu acabar com a própria vida. Com o passar do tempo, no entanto, ele superou sua humilhação; mas nunca mais, embora frequentemente se apaixonasse, e com muita paixão, ele ousou cortejar aquelas por quem se interessava. Depois de tomar posse da herança e descobrir que estava em posição de criar seu próprio mundo como o desejasse, percebeu que, para ter uma esposa — o que ele muito desejava, sendo de temperamento afetuoso e, na verdade, amoroso —, ele precisaria escolhê-la como o fizera com os empregados — entre a raça dos anões. Mas encontrar uma esposa apropriada era, descobriu, uma questão um tanto difícil; pois não se casaria com quem não se distinguisse pela beleza e pelo berço nobre. A filha anã de lorde Bemboro ele recusou porque, além de anã, era corcunda; ao passo que outra jovem, uma órfã que pertencia a uma família muito boa em Hampshire, foi por ele rejeitada porque seu rosto, como o de tantos anões, era encarquilhado e repulsivo. Finalmente, quando não lhe restava esperança de sucesso, ouviu de fonte segura que o conde Titimalo, um nobre veneziano, possuía uma filha de particular beleza e grandes qualidades, mas que tinha apenas noventa centímetros de altura. Partindo na mesma hora para Veneza, ele foi, logo ao chegar, prestar seus respeitos ao conde, a quem encontrou morando com a esposa e cinco filhos em um apartamento muito ruim num dos bairros mais pobres da cidade. Realmente, o conde estava tão empobrecido que até entrara em negociações (dizia-se) com uma trupe de palhaços e acrobatas, que tivera o azar de perder seu anão, para a venda de sua filha Filomena. Sir Hercules chegou a tempo de salvá-la desse destino cruel, pois ficou tão encantado com a graça e a beleza de Filomena que no final de três dias de corte fez-lhe uma proposta formal de casamento, esta aceita por ela não menos alegremente que pelo pai, que percebia num genro inglês uma rica e infalível fonte de renda. Depois de um casamento sem ostentação, no qual o embaixador inglês foi uma das testemunhas, Sir Hercules e sua esposa retornaram por mar à Inglaterra, onde estabeleceram, como ficou provado, uma vida de rotineira felicidade.

Crome e sua criadagem de anões deliciaram Filomena, que pela primeira vez se sentia uma mulher livre vivendo entre seus pares num mundo amigável. Tinha muitos gostos em comum com o marido, especialmente a música. Dotada de uma bela voz, de força surpreendente para alguém tão pequeno, conseguia alcançar um lá agudo sem esforço. Acompanhada pelo marido em seu belo violino de Cremona, que ele tocava, como já observamos, como se toca um violoncelo, ela cantava as árias mais vivas e mais ternas das óperas e cantatas de seu país natal. Sentados juntos ao cravo, descobriram que com suas quatro mãos podiam tocar todas as músicas escritas para duas mãos de tamanho comum, detalhe que dava extremo prazer a Sir Hercules.

Quando não estavam executando música ou lendo juntos, como faziam com frequência, tanto em inglês quanto em italiano, passavam o tempo em saudáveis exercícios ao ar livre, às vezes remando um barquinho no lago, porém mais amiúde cavalgando ou passeando de carruagem, ocupações nas quais, por lhe serem inteiramente novas, Filomena experimentava especial prazer. Quando se tornou uma amazona hábil, Filomena e o marido costumavam caçar no parque, naquele tempo muito mais extenso do que é agora. Não caçavam raposas ou lebres, mas coelhos, usando uma matilha de uns trinta pugs pretos e castanhos — uma raça de cachorro que, se não for superalimentada, pode perseguir um coelho tão bem quanto qualquer outra de porte maior. Quatro cavalariços anões, vestidos de librés escarlates e montados em pôneis exmoor brancos, caçavam com a matilha, ao passo que o patrão e a patroa, de roupas verdes, seguiam nos pôneis shetland pretos ou nos pôneis malhados new forest. Um retrato de toda a companhia de caça — cães, cavalos, cavalariços e patrões — foi pintado por William Stubbs, cuja obra Sir Hercules admirava tanto que o convidou, apesar de tratar-se de um homem de estatura normal, para ficar no castelo enquanto executava o quadro. Stubbs pintou também um retrato de Sir Hercules e sua esposa dirigindo a caleça verde esmaltada puxada por quatro pôneis shetland pretos. Sir Hercules usa um casaco de veludo cor de pêssego e culotes brancos; Filomena usa musselina florida e um chapéu grande com penas cor-de-rosa. As duas figuras em sua alegre carruagem destacam-se vivamente contra um fundo escuro de árvores, mas à esquerda do quadro as árvores se distanciam e desaparecem, de modo que os quatro pôneis pretos são vistos contra um céu pálido e estranhamente sinistro que tem a cor castanho-dourada de nuvens de tempestade iluminadas pelo sol.

Assim quatro anos passaram alegremente. No final desse tempo Filomena engravidou. Sir Hercules ficou felicíssimo. “Se Deus é bom”, escreveu em seu diário, “o nome de Lapith vai ser perpetuado e nossa mais rara e delicada raça transmitida através de gerações até que o mundo acabe reconhecendo a superioridade desses seres de quem agora costumam zombar.” Quando a esposa deu à luz um filho, ele escreveu um poema sobre o assunto. A criança foi batizada Ferdinando, em memória do fundador da casa.

Com a passagem dos meses certa inquietude começou a invadir a mente de Sir Hercules e sua esposa. Pois a criança crescia com uma rapidez extraordinária. Com um ano ela pesava tanto quanto Hercules pesava aos três. “Ferdinando segue em crescendo”, Filomena escreveu em seu diário. “Não parece natural.” Com dezoito meses o bebê era quase tão alto quanto o jóquei menor, um homem de trinta e seis anos. Será que Ferdinando estava destinado a se tornar um homem de dimensões normais, gigantescas? Era um pensamento que seus pais não ousavam formular em voz alta, mas na intimidade de seus respectivos diários ambos meditavam sobre isso com terror e consternação.

Em seu terceiro aniversário Ferdinando era mais alto que a mãe e não mais que alguns centímetros menor que o pai. “Hoje, pela primeira vez”, escreveu Sir Hercules, “discutimos a situação. A hedionda verdade não pode mais ser escondida: Ferdinando não é um de nós. Hoje, seu terceiro aniversário, um dia em que devíamos festejar a saúde, a força e a beleza de nosso filho, choramos juntos pela ruína de nossa felicidade. Deus nos dê forças para suportar esta cruz.” Aos oito anos Ferdinando era tão grand e tão exuberantemente saudável que os pais decidiram, embora a contragosto, mandá-lo para a escola. Ele foi enviado para Eton no início do semestre seguinte. A casa foi tomada de uma paz profunda. Ferdinando voltou nas férias de verão, maior e mais forte que nunca. Um dia ele derrubou o mordomo e quebrou-lhe o braço. “Ele é rude, indelicado, insensível à persuasão”, escreveu o pai. “A única coisa que lhe ensina bons modos é o castigo corporal.” Ferdinando, que nessa idade já era trinta e cinco centímetros maior que o pai, não recebeu nenhuma punição desse tipo.

Mais ou menos três anos depois, nas férias de verão, Ferdinando voltou para Crome acompanhado de enorme cão mastim. Ele o comprara de um velho em Windsor, que achava o animal caro demais para alimentar. Era um cão selvagem, no qual não se podia confiar; mal entrara na casa e atacou um dos pugs favoritos de Sir Hercules, agarrando a criatura na boca e sacudindo-a até quase matá-la. Não pouco perturbado pelo acontecimento, Sir Hercules ordenou que o animal fosse acorrentado nas cavalariças. Ferdinando respondeu de mau humor que o cachorro era seu, e ele o manteria onde bem entendesse. O pai, cada vez mais furioso, mandou que ele tirasse o cachorro da casa imediatamente, sob o risco de um grande aborrecimento. Ferdinando recusou-se. Sua mãe nesse momento entrou na sala, e o cão saltou sobre ela, derrubou-a e num piscar de olhos feriu seriamente seu ombro e braço; e teria, em seguida, atacado sua garganta se Sir Hercules não tivesse sacado da espada e estocado o animal no coração. Voltando-se para o filho, ordenou-lhe que deixasse o aposento imediatamente, por ser indigno de ficar no mesmo lugar que a mãe, a quem ele quase assassinara. Tão apavorante era o espetáculo de Sir Hercules postado com um pé sobre a carcaça do gigantesco cachorro, a espada em punho ainda ensanguentada, e tão autoritários eram sua voz, seus gestos e a expressão de seu rosto que Ferdinando fugiu da sala apavorado e comportou-se, pelo resto das férias, de modo exemplar. A mãe logo se recuperou das mordidas do mastim, mas o efeito dessa aventura em sua mente foi definitivo; dessa ocasião em diante ela sempre viveu em meio a terrores imaginários.

Os dois anos que Ferdinando passou no Continente, fazendo a Grande Viagem, foi um período de feliz descanso para seus pais. Mesmo então, contudo, a ideia do futuro os perturbava; não eram capazes de encontrar consolo com as diversões dos tempos anteriores. Lady Filomena perdera a voz, e Sir Hercules sofria demais de reumatismo para tocar violino. Ele, é verdade, ainda caçava com seus pugs, mas a esposa sentia-se velha demais e, desde o episódio com o mastim, por demais nervosa para tais esportes. No máximo, para agradar ao marido, ela seguia a caçada à distância, na pequena caleça puxada pelo mais velho e seguro dos pôneis shetland.

Chegou o dia marcado para a volta de Ferdinando. Filomena, adoentada por vagos receios e pressentimentos, retirou-se para seu quarto e sua cama. Sir Hercules recebeu o filho a sós. Um gigante de terno de viagem marrom entrou no aposento.

– Bem-vindo à casa, meu filho — disse Sir Hercules, a voz um pouco trêmula.

– Espero vê-lo bem, senhor. — Ferdinando inclinou-se para apertar-lhe a mão, depois endireitou-se novamente. O topo da cabeça do pai alcançava-lhe o quadril.

Ferdinando não viera sozinho. Dois amigos de sua idade acompanhavam-no, e cada um dos rapazes trouxera um criado. Durante trinta anos Crome não fora maculada pela presença de tantos membros da raça comum dos homens. Sir Hercules ficou estarrecido e indignado, mas as leis da hospitalidade tinham de ser obedecidas. Recebeu os dois rapazes com severa polidez e mandou os criados para a cozinha, com ordens para que fossem bem tratados.

A velha mesa de jantar da família foi arrastada para fora e espanada (Sir Hercules e a esposa estavam acostumados a jantar a uma mesinha de cinquenta centímetros de altura). Simon, o idoso mordomo, que mal podia enxergar o tampo da mesa, teve a ajuda dos três criados trazidos por Ferdinando e seus amigos.

Sir Hercules presidiu a refeição, e com sua elegância costumeira sustentou uma conversa sobre os prazeres de viajar ao estrangeiro, as belezas da arte e da natureza a serem vistas lá fora, a ópera em Veneza, o coral dos órfãos nas igrejas da mesma cidade e outros temas de natureza semelhante. Os jovens não estavam prestando atenção particular a seus discursos; estavam ocupados observando os esforços do mordomo para mudar os pratos e encher as taças. Disfarçavam as risadas com violentos e repetidos ataques de tosse ou engasgos. Sir Hercules fingiu não perceber, mas mudou o assunto da conversa para o esporte. Aí um dos rapazes perguntou se era verdade, como ele ouvira dizer, que ele costumava caçar coelhos com uma matilha de pugs minúsculos. Sir Hercules replicou que era, e pôs-se a descrever pormenorizadamente a caçada. Os rapazes rolavam de rir.

Depois do jantar, Sir Hercules desceu de sua cadeira e, dando a desculpa de que precisava ver como estava a esposa, desejou-lhes boa noite. O som das risadas seguiu-o escada acima. Filomena não estava dormindo; estava deitada na cama, ouvindo o som das gargalhadas e o passo de pés estranhamente pesados pelas escadas e ao longo dos corredores. Sir Hercules puxou uma cadeira para a beira da cama e sentou-se, silencioso durante um longo tempo, segurando a mão da esposa e às vezes apertando-a levemente. Mais ou menos às dez horas assustaram-se com um ruído violento. Houve vidro quebrado, pés batendo e uma explosão de gritos e risadas. Como o tumulto continuasse por vários minutos, Sir Hercules pôs-se de pé e, apesar dos pedidos da esposa, preparou-se para ir ver o que estava acontecendo. Não havia luz na escada e Sir Hercules tateou seu caminho cuidadosamente, descendo degrau por degrau e parando um momento em cada um antes de aventurar-se a um novo passo. O ruído era maior ali; a gritaria articulou-se em palavras e frases reconhecíveis. Uma réstia de luz era visível sob a porta da sala de jantar. Sir Hercules atravessou silenciosamente o vestíbulo em direção a ela. Ao aproximar-se da porta, houve outro terrível estrondo de vidro quebrado e metal golpeado. Que poderiam estar fazendo? Na ponta dos pés ele conseguiu olhar pela fechadura. No meio da mesa devastada o velho Simon, o mordomo, tão cheio de bebida que mal podia manter o equilíbrio, dançava uma giga. Os pés esmigalhavam o vidro quebrado, e os sapatos estavam molhados de vinho derramado. Os três rapazes estavam sentados em volta, esmurrando a mesa com as mãos ou com garrafas de vinho vazias, rindo e gritando frases de encorajamento. Os três criados, encostados à parede, riam também. Ferdinando jogou de repente um punhado de castanhas na cabeça do dançarino, o que surpreendeu e assustou tanto o homenzinho que ele cambaleou e caiu de costas, derrubando um frasco de cristal e várias taças. Eles ergueram-no, deram-lhe conhaque para beber, bateram-lhe nas costas. O velho sorriu e soluçou.

– Amanhã vamos fazer um balé com toda a criadagem — declarou Ferdinando.

– Com papai Hercules usando seu porrete e sua roupa de pele de leão — acrescentou um de seus companheiros, e os três caíram na gargalhada.

Sir Hercules não quis ver nem ouvir mais. Tornou a atravessar o vestíbulo e começou a subir a escada, erguendo os joelhos dolorosamente a cada degrau. Era o fim; agora não havia lugar para ele no mundo, nenhum lugar para ele e Ferdinando juntos.

A esposa ainda estava acordada; a seu olhar interrogador ele respondeu:

– Estão zombando do velho Simon. Amanhã será nossa vez. Ficaram em silêncio por algum tempo. Finalmente Filomena falou:

– Não quero ver o amanhã.

– É melhor não — disse Sir Hercules.

Indo para seu gabinete, escreveu em seu diário um relato completo e detalhado dos acontecimentos da noite. Ainda ocupado nessa tarefa, chamou um criado e mandou que lhe preparassem água quente e um banho para as onze horas. Terminando de escrever, foi ao quarto da esposa e, preparando uma dose de ópio vinte vezes mais forte do que a que ela estava acostumada a tomar quando não conseguia dormir, deu-a a ela, dizendo:

– Aqui está seu remédio para dormir.

Filomena pegou o copo e segurou-o por algum tempo, mas não bebeu imediatamente. Lágrimas vieram-lhe aos olhos.

– Você se lembra das canções que costumávamos cantar, sentados lá fora sulla terrazza no verão? — Começou a cantar suavemente com o resto de sua voz estragada alguns compassos do Amor, amor, non dormir più, de Stradella. — E você tocando o violino. Parece que foi há tão pouco tempo, no entanto está tão longe, longe, longe. Addio, amore. A rivederci.

Bebeu a poção e, deitando-se sobre o travesseiro, fechou os olhos. Sir Hercules beijou-lhe a mão e saiu pé ante pé, como se tivesse medo de despertá- la. Voltou para seu gabinete e, tendo registrado as últimas palavras da esposa para ele, derramou na banheira a água que lhe fora trazida de acordo com suas ordens. Como a água estava demasiado quente para que ele entrasse imediatamente, tirou da estante seu exemplar de Suetônio. Queria ler como Sêneca tinha morrido. Abriu o livro ao acaso. “Mas os anões”, leu, “eram odiados por ele por serem lusus naturae e um presságio ruim.” Encolheu-se como se tivesse sido golpeado. Esse mesmo Augusto, ele se lembrava, tinha exibido no anfiteatro um rapaz chamado Lúcio, de boa família, que não chegava a sessenta centímetros de altura e pesava sete quilos e meio, porém possuía voz estentórea. Virou a página. Tibério, Calígula, Cláudio, Nero: era uma história de horror crescente. “Sêneca, seu preceptor, obrigou-o a suicidar-se.” E havia Petrônio, que em seus últimos momentos chamou os amigos, pedindo-lhes que lhe falassem, não dos consolos da filosofia, mas de amor e galanteria, enquanto a vida lhe fugia através das veias abertas. Mergulhando mais uma vez a pena na tinta ele escreveu na última página no diário: “Teve uma morte romana”. Então, colocando os dedos de um pé na água e constatando que ela já não estava quente demais, tirou o roupão e, pegando uma lâmina, sentou-se na banheira. Com um talho profundo cortou a artéria do pulso esquerdo, depois recostou-se e aquietou a mente para meditar. O sangue escorreu, flutuando na água em círculos e espirais que se dissolviam. Em pouco tempo a água estava tinta de cor-de-rosa. A cor escureceu; Sir Hercules encontrou-se dominado por uma tonteira invencível; afundava de sonho vago a sonho vago. Logo estava profundamente adormecido. Não havia muito sangue em seu corpo pequeno.
Aldous Huxley

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