Em suma, fui atacado por uma espécie de insaciável sede de novidades, de mudança de lugares, de impressões gerais, sintéticas, panorâmicas. Mas o que esperam de mim depois destas confissões? O que lhes contarei? O que lhes representarei? Um panorama? Uma perspectiva? Qual‑ quer coisa de relance? Mas talvez vocês sejam os primeiros a dizer que eu voei demasiado alto. Além disso, considero‑me um homem consciencioso, e não queria de modo nenhum mentir, nem mesmo na qualidade de viajante. E se começo a apresentar‑lhes e a descrever nem que seja apenas um panorama, mentirei inevitavelmente, não por ser um viajante, mas simplesmente porque nas minhas circunstâncias é impossível não mentir. Vejam por vocês mesmos: Berlim, por exemplo, causou em mim a mais azeda impressão, apesar de lá ter estado apenas vinte e quatro horas. E agora sei que sou culpado para com Berlim, que não me atrevo a afirmar que ela causa uma impressão azeda. Que seja ao menos agridoce, e não simplesmente azeda. E a que se deveu esse meu erro nefasto? Decididamente, a que, sendo eu um homem doente do fígado, viajei durante dois dias no caminho‑de‑ferro, entre a chuva e o nevoeiro, até Berlim e, ao chegar, sem ter dormido, amarelo, cansado, quebrado, notei de repente ao primeiro olhar que Berlim é incrivelmente parecida com Petersburgo. As mesmas ruas em cordão, os mesmos cheiros, as mesmas… (Mas de resto, não vale a pena enumerar o mesmo!) Fu, meu Deus, pensava para comigo: valia a pena quebrar os ossos durante dois dias na carruagem para ver as mesmas coisas de que fugi? Nem das tílias gostei, e, para as manterem, os berlinenses sacrificam tudo o que lhes é mais caro, incluindo talvez até a sua Constituição; e o que é mais caro para um berlinense do que a sua Constituição? E ainda por cima os próprios berlinenses, todos até ao último, pareciam tão alemães, que eu, apesar dos frescos de Kaulbach (oh, horror!), esgueirei‑me rapidamente para Dresden, alimentando na alma a profunda convicção de que é preciso habituarmo‑nos de modo especial aos alemães e que, sem a habituação, é muitíssimo difícil suportá‑los em grandes massas. E em Dresden até cometi uma falta para com as alemãs: assim que saí para a rua, pareceu‑me de repente que não havia nada mais repugnante do que o tipo de mulheres de Dresden e que até o próprio cantor do amor, Vsevolod Kresto‑ vski, o mais convicto e alegre dos poetas russos, ficaria aqui completamente perdido e até talvez ficasse com dúvidas sobre a sua vocação. Eu, é claro, naquele mesmo momento senti que dizia disparates e que ele não poderia duvidar da sua vocação em circunstâncias algumas. Ao fim de duas horas, tudo me foi explicado: ao voltar ao meu quarto de hotel e ao deitar a língua de fora em frente do espelho, convenci‑me de que o meu juízo sobre as senhoras de Dresden parecia a mais negra calúnia. A minha língua estava amarela, em mau estado… «E será possível, será possível, que o homem, esse rei da natureza, dependa de tal maneira do seu próprio fígado — pensei —, que baixeza!» Com estes pensamentos consoladores parti para Colónia. Confesso que tinha muitas expectativas da catedral; ainda na juventude desenhava‑a com devoção, quando estudava arquitectura. No comboio de regresso através de Colónia, ou seja, um mês depois, quando, regressando de Paris, avistei a catedral pela segunda vez, queria «pedir‑lhe perdão de joelhos» por não ter compreendido a sua beleza da primeira vez, exactamente como Karamzin4, que, com o mesmo objectivo, se ajoelhou diante das Cataratas do Reno. No entanto, daquela primeira vez a catedral não me agradou nada: pareceu‑me que aquilo eram apenas rendilhados, artigo de capelista como os pesa‑papéis na escrivaninha, com setenta braças de altura. «Majestosamente pouco» — decidi, do mesmo modo que antigamente os nossos avós decidiam acerca de Púchkin: «Compõe com demasiada facilidade, tem pouca elevação.» Suspeito que nessa primeira decisão influíram duas circunstâncias, e a primeira delas: a água‑de‑colónia. Jean‑Maria Farina5 encontra‑se ali mesmo ao lado da catedral e, em qualquer hotel em que nos instalemos, seja qual for o nosso estado de espírito, por mais que nos escondamos dos nossos inimigos e de Jean‑Maria Farina em especial, os seus clientes vêm encontrar‑nos certamente, e é logo: «água‑de‑colónia ou la vie», não há outra opção. Não posso afirmar de certeza que gritam precisamente estas palavras: «Eau de Cologne ou la vie!», mas quem sabe — até pode ser. Lembro‑me de que então sempre assim me parecia e ouvia. A segunda circunstância que me agastou e me tornou injusto foi a nova ponte de Colónia. A ponte é sem dúvida magnífica, e é com justiça que a cidade se orgulha dela, mas a mim pareceu‑me que se orgulhava demasiado. É evidente que me irritei logo com isso. Além do mais, o colector de moedas à entrada da ponte maravilhosa não tinha nada que me cobrar aquela prudente taxa com o ar de quem me cobra uma multa por uma qualquer falta desconhecida. Não sei, mas a mim pareceu‑me que o alemão está a armar‑se em fanfarrão.
"Por certo percebeu que eu sou estrangeiro e precisamente russo" — pensei. Pelo menos os olhos dele por pouco não disseram: "Estás a ver a nossa ponte, russo miserável, pois tu não passas de um verme diante da nossa ponte e diante de qualquer alemão, porque não tens uma ponte como esta." Concordem, isto é insultuoso. É claro que o alemão não disse nada disto, até talvez nem tivesse isso em mente, mas vem a dar no mesmo; eu tinha então tanta certeza de que ele queria dizer precisamente isso, que fiquei logo completamente furioso. "Diabos te levem — pensei —, nós também inventámos o samovar… publicamos revistas… no nosso país fazem‑se coisas para oficiais… temos…" — numa palavra, encolerizei‑me e depois, comprando um frasco de água‑de‑colónia (ao qual já não conseguia de maneira nenhuma escapar), parti imediatamente para Paris, na esperança de que os franceses fossem muito mais amáveis e mais interessantes. Agora julguem por vocês próprios: se eu me tivesse dominado, se tivesse permanecido em Berlim não um dia, mas uma semana, em Dresden outro tanto, em Colónia digamos uns três dias, ou pelo menos dois, por certo teria olhado uma segunda, ou até uma terceira vez para os mesmos objectos com outros olhos e teria formado sobre eles uma ideia mais conveniente. Até um raio de sol, um qualquer simples raio de sol, tinha aqui muito significado: se ele brilhasse sobre a catedral, como brilhou depois na segunda vez à minha chegada à cidade de Colónia, o edifício por certo havia de mostrar‑se à sua verdadeira luz, e não como naquela manhã nublada e até um pouco chuvosa, que apenas pôde suscitar em mim um acesso de patriotismo ofendido. De resto, isto não significa, de modo nenhum, que o patriotismo surge apenas com mau tempo. Pois bem, estão a ver, meus amigos: em dois meses e meio é impossível ver tudo como deve ser, e eu não lhes posso fornecer as informações mais precisas.
Fiódor Dostoievski, "Notas de Inverno sobre Impressões de Verão"

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