segunda-feira, dezembro 8

Não há sangue nas mãos do atirador


Sobre desumanização
E os homens são homens e as mulheres são homens
E as crianças são homens!

Padraic Fiacc

Nós morremos muito. Morremos em manchetes efêmeras, entre suspiros. Nossa morte é tão cotidiana que os jornalistas a noticiam como se estivessem falando do tempo: Céu nublado, chuvas leves, e três mil palestinos mortos nos últimos dez dias. E assim como no caso do tempo, o único responsável é Deus, e não os colonos israelenses armados, não os ataques direcionados de drones.

Não prestamos atenção a cadáveres nos nossos campos. Sua existência é monótona, previsível. O morticínio é a tal ponto implacável que é quase esperado — antecipado — por aqueles que logo serão abatidos. Seus pulsos, grandes e diminutos, presos às costas por algemas em viaturas policiais. A morte está em toda parte. Até a metáfora é vítima da guerra.

O figurativo se tornou dolorosamente literal: barbas cobertas de sangue, móveis em árvores, um membro dependurado num ventilador de teto, mulheres dando à luz no concreto. Et cetera. Será que estamos acostumados demais com o horror? O que antes era horripilante, o que um dia foi presságio de um desastre, hoje faz parte da paisagem; a morte agora é um espantalho que já não assusta. Mesmo quando os corvos crocitam mais alto, seu ruído atinge apenas ouvidos desinteressados. Não restou nenhuma santidade à morte. Nenhuma divindade vem ao resgate. Morremos esquecidos. Morremos muito e em completo abandono.

Nossos massacres só são interrompidos por intervalos comerciais. Juízes os legalizam. Correspondentes nos matam com voz passiva. Se tivermos sorte, diplomatas dirão que nossa morte é causa de preocupação, porém, eles jamais mencionam os culpados, muito me­nos os condenam. Políticos, inertes, ineptos ou cúmplices, financiam nossa morte, depois fingem empatia, quando muito. Acadêmicos não se mexem. Quer dizer, isso até que a poeira baixe; depois eles escreverão livros sobre como tudo deveria ter sido. Cunharão termos e coisas do gênero. Lecionarão no pretérito. E os abutres, mesmo em meio a nós, farão passeios por mu­seus, glorificando, romantizando aquilo que um dia condenaram, aquilo que não se dignaram a defender — a nossa resistência —, mistificando, despolitizando, comercializando. Os abutres farão esculturas de nossa carne.
Mohammed El-Kurd, "Vítimas perfeitas e a política do apelo"

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