quarta-feira, dezembro 17

A forma do livro

Assim como volumes pequenos serviam a propósitos específicos, os grandes volumes atendiam a outras necessidades dos leitores. Por volta do século V, a Igreja católica começou a produzir enormes livros de culto – missais, corais, antifonários – que, expostos sobre um atril no meio do coro, permitiam que os leitores seguissem as palavras ou notas musicais sem nenhuma dificuldade, como se estivessem lendo uma inscrição monumental. Há um belo antifonário na biblioteca da abadia de Saint Gal, contendo uma seleção de textos litúrgicos em letras tão grandes que podem ser lidas a uma boa distância, seguindo-se a cadência de cantos melódicos, por coros de até vinte cantores; a vários metros de distância, posso ver as notas com absoluta clareza, e gostaria que meus livros de referência pudessem ser consultados com a mesma facilidade. Alguns desses livros de culto eram tão imensos que tinham de ser postos sobre rodinhas para que pudessem ser movidos. No entanto, muito raramente saíam do lugar. Decorados com latão ou marfim, protegidos com cantos de metal, fechados por fivelas gigantescas, eram livros para serem lidos comunalmente e à distância, desautorizando qualquer leitura íntima ou sentimento de posse individual.
Visando ler um livro de maneira confortável, os leitores inventaram engenhosos aperfeiçoamentos para o atril e a escrivaninha. Há uma estátua de são Gregório, o Grande, feita de pedra pigmentada em Verona, em algum momento do século XIV, e preservada no Victoria and Albert Museum de Londres: ela mostra o santo numa espécie de mesa de leitura articulada, que lhe permitia apoiar o atril em diferentes ângulos ou levantá-lo para poder sair. Uma gravura do século XIV mostra um estudioso numa biblioteca cheia de livros, escrevendo numa mesa-com-atril octogonal que lhe permite trabalhar de um lado, depois girar a mesa e ler os livros já dispostos nos outros sete lados. Em 1588, o engenheiro italiano Agostino Ramel i, a serviço do rei da França, publicou um livro que descrevia uma série de máquinas. Uma delas era uma “mesa de leitura rotativa”, que Ramel i apresenta como “uma bela e engenhosa máquina, muito útil e conveniente para as pessoas que têm prazer no estudo, em especial para aquelas que sofrem de indisposição ou que estão sujeitas à gota, pois com esse tipo de máquina um homem pode ver e ler uma grande quantidade de livros sem sair do lugar: ademais, tem esta excelente conveniência que é a de ocupar pouco espaço no lugar onde é colocada, como qualquer pessoa de discernimento pode apreciar vendo o desenho”. (Um modelo em escala real dessa maravilhosa roda de leitura apareceu no filme Os três mosqueteiros, dirigido em 1974 por Richard Lester.) Assento e mesa de leitura podiam se combinar num único móvel. A engenhosa cadeira de rinha (assim chamada por ter sido representada em ilustrações de briga de galo) foi feita na Inglaterra no início do século XVIII, especificamente para bibliotecas. O leitor sentava-se a cavalo nela, de frente para a estante atrás da cadeira, e apoiava-se nos braços largos, obtendo suporte e conforto.

Às vezes um dispositivo de leitura surgia de um tipo diferente de necessidade. Benjamin Franklin conta que, durante o reinado da rainha Maria, seus ancestrais protestantes escondiam as Bíblias inglesas, mantendo-as “abertas e presas com fitas sob um banco portátil”. Sempre que o trisavô de Franklin lia para a família, “punha o banco de cabeça para baixo sobre os joelhos, virando as páginas sob as fitas. Um dos meninos ficava na porta para avisar se via chegando o apparitor, que era um oficial da corte espiritual. Nesse caso, o banco voltava à posição normal e a Bíblia continuava escondida como antes”.

Fazer um livro artesanalmente, fossem os imensos volumes presos aos atris ou os requintados livretes feitos para mãos de criança, era um processo longo e laborioso. Uma mudança ocorrida na Europa na metade do século XV não só reduziu o número de horas de trabalho necessárias para produzir um livro, como aumentou enormemente a produção de livros, alterando para sempre a relação do leitor com aquilo que deixava de ser um objeto único e exclusivo confeccionado pelas mãos de um escriba. A mudança, evidentemente, foi a invenção da imprensa.

Em algum momento da década de 1440, um jovem gravador e lapidador do arcebispado da Mogúncia, cujo nome completo era Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg (que o espírito prático do mundo dos negócios abreviou para Johann Gutenberg), percebeu que se poderia ganhar em rapidez e eficiência se as letras do alfabeto fossem cortadas na forma de tipos reutilizáveis, e não como os blocos de xilogravura então usados ocasionalmente para imprimir ilustrações. Gutenberg experimentou durante muitos anos, tomando emprestadas grandes quantias de dinheiro para financiar o empreendimento.

Conseguiu criar todos os elementos essenciais da impressão tais como foram usados até o século XX: prismas de metal para moldar as faces das letras, uma prensa que combinava características daquelas utilizadas na fabricação de vinho e na encadernação, e uma tinta de base oleosa – nada que já existisse antes. Por fim, entre 1450 e 1455 Gutenberg produziu uma Bíblia com 42 linhas por página – o primeiro livro impresso com tipos – e levou as páginas impressas para a Feira Comercial de Frankfurt. Por um extraordinário golpe de sorte, temos uma carta de um certo Enea Silvio Piccolomini ao cardeal de Carvajal, datada de 12 de março de 1455, em Wiener Neustadt, contando a Sua Eminência que vira a Bíblia de Gutenberg na feira: Não vi nenhuma Bíblia completa, mas vi um certo número de livretes [cadernos] de cinco páginas de vários dos livros da Bíblia, com letras muito claras e dignas, sem quaisquer erros, que Vossa Eminência teria sido capaz de ler sem esforço e sem óculos. Várias testemunhas disseram-me que 158 exemplares foram completados, enquanto outros dizem que havia 180. Não estou certo da quantidade, mas da conclusão dos livros, se podemos crer nas pessoas, não tenho dúvidas. Soubesse eu de vossas vontades, teria certamente comprado um exemplar. Vários desses livretes de cinco páginas foram mandados para o próprio imperador. Tentarei, tanto quanto possível, conseguir que uma dessas Bíblias seja posta à venda e comprarei um exemplar para vós. Mas temo que isso não seja possível, devido à distância e porque, dizem, antes mesmo de os livros ficarem prontos já havia clientes a postos para comprá-los.

Os efeitos da invenção de Gutenberg foram instantâneos e de alcance extraordinário, pois quase imediatamente muitos leitores perceberam suas grandes vantagens: rapidez, uniformidade de textos e preço relativamente barato. Poucos anos depois da impressão da primeira Bíblia, máquinas impressoras estavam instaladas em toda a Europa: em 1465 na Itália, 1470 na França, 1472 na Espanha, 1475 na Holanda e na Inglaterra, 1489 na Dinamarca. (A imprensa demorou mais para alcançar o Novo Mundo: os primeiros prelos chegaram em 1533 à Cidade do México e em 1638 a Cambridge, Massachusetts.) Calculou-se que mais de 30 mil in cunabula (palavra latina do século XVII que significa “relacionado ao berço”, usada para descrever os livros impressos antes de 1500) foram produzidos nesses prelos. Visto que as edições do século XV costumaram ser de menos de 250 exemplares e dificilmente chegavam a mil, a façanha de Gutenberg deve ser considerada prodigiosa. De repente, pela primeira vez desde a invenção da escrita, era possível produzir material de leitura rapidamente e em grandes quantidades.

Talvez seja útil não esquecer que a imprensa, apesar das óbvias previsões de “fim do mundo”, não erradicou o gosto pelo texto escrito à mão. Ao contrário, Gutenberg e seus seguidores tentaram imitar a arte dos escribas, e a maioria dos incunabula tem uma aparência de manuscrito. No final do século XV, embora a imprensa estivesse bem estabelecida, a preocupação com o traço elegante não desaparecera e alguns dos exemplos mais memoráveis de caligrafia ainda estavam por vir. Ao mesmo tempo em que os livros se tornavam de acesso mais fácil e mais gente aprendia a ler, mais pessoas também aprendiam a escrever, frequentemente com estilo e grande distinção; o século XVI tornou-se não apenas a era da palavra escrita, como também o século dos grandes manuais de caligrafia. É interessante observar a frequência com que um avanço tecnológico – como o de Gutenberg – antes promove do que elimina aquilo que supostamente deve substituir, levado-nos a perceber virtudes fora de moda que de outra forma não teríamos notado ou que consideraríamos sem importância. Em nosso tempo, a tecnologia dos computadores e a proliferação de livros em CD-Rom não afetaram – até onde mostram as estatísticas – a produção e venda de livros na antiquada forma de códice. Aqueles que veem nos computadores a encarnação do diabo (como Sven Birkerts os retrata numa obra dramaticamente intitulada Elegias a Gutenberg) abrem espaço para que a nostalgia domine a experiência. Por exemplo, 359437 livros novos (sem contar panfletos, revistas e periódicos) foram acrescentados em 1995 às já amplíssimas coleções da Biblioteca do Congresso.

O súbito aumento da produção de livros depois de Gutenberg enfatizou a relação entre o conteúdo e a forma física de um livro. Por exemplo: uma vez que se destinava a imitar os caros volumes feitos à mão da época, a Bíblia de Gutenberg era comprada em folhas reunidas e encadernada pelos compradores em grandes e imponentes tomos – em geral in-quartos medindo cerca de trinta por quarenta centímetros destinados a ficar expostos sobre um atril. Uma Bíblia desse tamanho em velino teria exigido a pele de mais de duzentas ovelhas (“uma cura certa para a insônia”, comentou o livreiro e antiquário Alan G. Thomas). Mas a produção rápida e barata levou a um mercado maior, composto por gente que podia comprar exemplares para ler em particular e que, portanto, não precisava de livros com tipos e formatos grandes; os sucessores de Gutenberg começaram então a produzir volumes menores, volumes que cabiam no bolso.
Alberto Manguel, "A História da Leitura"

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