Viu a Morte no ônibus. Sorriu para ela, ela retribuiu. Quando desceu, ela desceu também e o seguiu. Ele andou devagar, para que ela o alcançasse, mas ela também retardou o passo. Ao chegar ao portão de sua casa, ele fingiu dificuldade para encontrar a chave e ficou esperando. Mas ela passou por ele, disse “boa noite, Altair” e, sorrindo, fez um gesto, apontando o fim da rua. Ele entrou. A mulher estava na cozinha. De mau-humor, ele disse: “Acho que alguém vai morrer hoje aqui na vila.” Ela desligou o fogão: “Sabe que eu também estou com essa sensação de morte? Deus nos livre.” Ele estava tão decepcionado que a mulher perguntou se tinha acontecido alguma coisa no emprego. Na hora de dormir, ele escancarou a janela do quarto. “Ei, você ficou louco? Com este frio…”, resmungou a mulher, fechando-a. Ela logo adormeceu. Ele ainda esperou meia hora, mas dormiu também. Acordou de madrugada, com o barulho de um tiroteio no fim da rua, mas nem foi abrir a janela. Havia perdido a esperança.
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Talvez eu esteja destinado a acordar às sete, todo dia, ao chamado das irmãs de caridade. Talvez haja alegria em meu rosto quando me levarem para tomar um café com bolo de fubá e ir à missa na capela do asilo. Talvez, como os outros velhinhos, eu encontre finalmente Deus e Ele seja melhor do que eu sempre imaginei. Talvez, numa manhã ou em outra, haja sol e possamos caminhar pelo gramado e sentar-nos ao sol, em bancos oferecidos pela empresa tal. Talvez, trocando reminiscências, me digam que eu fui mais feliz do que qualquer outro velhinho dali, e talvez eu acredite. Talvez, sem a agitação do mundo, eu descubra enfim o truque de viver e, conversando com as flores do jardim cuidado pelas irmãs, eu encontre as interlocutoras ideais. Talvez seja esse o futuro bem-aventurado que desde a adolescência eu venho sonhando, embalado pela poesia. Talvez haja gatos ali, um para cada velhote, e venhamos a conhecer o nome das nuvens brancas e elas nos chamem carinhosamente de seu Altair, seu Jonas, seu Raul.
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Esquece as coisas, perde tudo, baba até quando diz a palavra esperança. Nos sonhos, é perseguido por multidões que querem açoitá-lo, queimá-lo, enforcá-lo. Se os sonhos trazem revelações, talvez ele tenha descoberto tardiamente a vocação de mártir. Isso é paranoia, dizem-lhe, mas ele já não consegue guardar o sentido das palavras. Pensa ter sido poeta um dia, talvez seja ainda, e nos sonhos é achincalhado por homens de nome estrangeiro, como Alzheimer e Parkinson. Talvez sejam rivais seus, antigos ou recentes. Ou talvez sejam nomes de cachorros, pelos quais é também perseguido, nos sonhos e fora deles. Como se chama o da vizinha, mesmo? Walcott, parece. Ou Eliot?
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Alertou-me um amigo, dos três que ainda não me abandonaram, que venho falando muito de morte. É verdade, eu venho. Mas – eu disse a ele – tenho falado igualmente de amor. Falaria de vida, também, se o amor se tivesse aliado a ela. Mas o amor encantou-se com a morte e vive a bajulá-la, a elogiar seus lábios, seu batom, seus brincos, seus cabelos longos como a eternidade.

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