quarta-feira, fevereiro 15

Diário

1893

Domingo, 26 de novembro

Será que quando eu me casar vou gostar tanto de meu marido como mamãe de meu pai? Deus o permita. Mamãe só vive para ele e não pensa noutra coisa. Quando ele está em casa, os dois passam juntinhos o dia inteiro numa conversa sem fim. Quando meu pai está na Boa Vista, que é a semana toda, mamãe leva cantando umas cantigas muito ternas que a gente vê que são saudades e só arranjando-lhe as roupas, juntando ovos e engordando os frangos para os jantares de sábado e domingo. São dias de se passar bem em casa.

Segunda-feira tio Joãozinho levou meu pai para verem um serviço no Biribiri e voltarem no fim da semana. Terça-feira cedo, quando chegamos à janela, estava na porta a besta nossa conhecida, esperando a ração.

Admirei a energia de mamãe. Ela foi logo dizendo: "Preparem-se para seguirmos amanhã de madrugada. Aconteceu alguma coisa a Alexandre". E com os olhos cheios de lágrimas mandou Cesarina matar dois frangos para a matalotagem.

De tarde pôs na maleta um vestido para cada uma de nós, uma roupa para meus irmãos e mandou chamar José Pedro para carregar a mala. O cesto da matalotagem Renato levava. Deitamos cedo, com a roupa ao lado, para nos levantar de madrugada, vestir e sairmos. Mamãe não se deitou dizendo que não podia dormir e passaria rezando. Nós não tínhamos ainda tirado um bom sono quando mamãe nos acordou: "Levantem que o galo já cantou duas vezes. Devem ser quatro horas. É bom que o dia clareie conosco para lá da Pedra Grande". Levantamos, tomamos o café e saímos, mamãe, meus irmãos e os dois crioulinhos, Cesarina e José Pedro.

Quando chegamos à rua achei o céu muito estrelado e a noite muito escura para quatro horas. Fomos andando, e nada do dia clarear. Quando já estávamos muito longe ouvimos o relógio da igreja do Seminário bater duas horas. Aí caímos todos no riso mas mamãe, a única responsável, não achou graça. Ela dizia: "O pior não é a hora. Até é bom viajar com a noite. Mas é que estou achando o caminho diferente. A estrada do Biribiri é bem mais larga". Fomos andando até não sabermos mais onde estávamos. Aí mamãe disse: "Esse caminho está estúrdio demais. É melhor sentarmos e esperarmos o dia clarear". Ela sentou-se numa pedra, estendeu o xale no chão para meus irmãos deitarem, colocou minha cabeça e a de Luisinha no colo, tirou o rosário e pôs-se a rezar enquanto dormíamos.

Quando o dia clareou, que abismo! Tínhamos errado o caminho. Estávamos num lugar de onde parecia que não seríamos capazes de sair. Era no alto da Serra dos Cristais e de lá de cima avistamos a estrada lá embaixo. Estávamos num precipício! Nós sempre confiantes em mamãe e suas orações; mas ela estava muda e só rezando. Perguntamos o que havíamos de fazer. Ela disse: "Esperem. Estou rezando a Santa Maria Eterna e só depois é que vou saber o que tenho de fazer". Esperamos. Pouco depois ela disse: "Voltar para trás está difícil, porque não sabemos o caminho. O que temos que fazer é seguir com fé em Deus, procurando sair daqui escorregando pela serra abaixo".

Nós, que parecíamos uns cabritos, escorregamos às vezes pedaços tão grandes, que só embaixo é que vimos o absurdo do que fazíamos. Renato quis fazer uma estripulia pendurando-se numa árvore pequena. Ela quebrou e ele caiu num buraco da serra e nós o perdemos de vista. Nessa hora pusemo-nos a chorar e a gritar. Mamãe, com os olhos cheios de lágrimas olhava para o céu e rezava: "Santa Maria Eterna, Virgem das Virgens, valei-me nesta ocasião, livrai-me desta aflição". Então o negrinho pediu o guarda-chuva, amarrou uma correia e deu a Renato para segurar e subir. Essa tentativa falhou umas três vezes. Por fim mamãe lhe deu o xale para segurar e ele subiu até em cima. Continuamos a rolar até cairmos na estrada.

Esta descida calculo que levou umas seis horas, pois o sol estava alto quando chegamos embaixo. Quando reparamos em nossas figuras rimos horrorizados. Nossos vestidos ensopados e em farrapos. Só nesta hora é que mamãe viu que Luisinha estava com o rosto disforme com caxumba! Estávamos com fome e não havia mais nada que comer; a matalotagem tinha acabado. Fomos para trás de uma moita, enquanto mamãe vigiava a estrada e mudamos a roupa.

Nesse lugar, enquanto descansávamos, passou um beija-flor-de-rabo-branco e aproximou-se de nós. Renato deu com o chapéu no pobrezinho e atirou-o morto no chão. Mamãe lhe disse: "Que malvado! Você vai ver o que te acontece. Afianço que você não vai ganhar nem um presentinho no Biribiri!". Sempre que vamos ao Biribiri voltamos carregados de presentes. Dona Mariana dá-nos das fazendas da fábrica; meu tio, dinheiro e latas de doces.

Depois de descansar seguimos para o Biribiri. Fomos recebidos com alegria e espanto. Quando mamãe contou a história do aparecimento da besta e as aventuras da viagem, todos riram à grande. Só então meu pai soube que a besta tinha fugido do pasto e voltado para casa.

Passamos lá dois dias e voltamos ontem para a cidade com um fardo dos presentes que todos nós ganhamos. Menos Renato, que não ganhou nem um lenço. Depois há gente que não acredita em castigo de quem mata beija-flor. Eu não poderei mais duvidar.
Helena Morley, "Minha vida de menina"

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