domingo, fevereiro 26

Quem sou eu?

Eu sou aquele cara preguiçoso que, numa noite de inverno, está lendo na cama, todo enrolado nos edredons. Na hora de dormir, ele precisa levantar e ir até a parede do quarto para desligar a luz, mas o frio o impede. Uma noite ele joga o chinelo e acerta o interruptor, apagando a luz. E desse dia em diante a hora de dormir se transforma num campeonato-contra-si-mesmo, em que ele arremessa chinelos, livros, travesseiros, tudo que tiver à mão, até que lá pela décima-quinta tentativa consegue acertar o interruptor e apagar a luz.

Eu sou aquele velhinho que no sábado manda comprar um saco de milho e no domingo pede para ser levado à praça pela manhã, para dar milho aos pombos; e que no domingo em que por algum motivo não pode ir, fica tendo palpitações porque acha que os pombos vão sentir sua falta.

Eu sou aquele troll rancoroso que passa o dia inteiro pulando de saite em saite e insultando pessoas que não conhece, a respeito de assuntos que não entende, e quando sai do computador começa a chutar a mobília, machuca o dedo do pé e fica pulando num pé só e gemendo de dor no meio da sala e berrando “vocês vão ver uma coisa, vocês vão ver!”.

Eu sou aquela noivinha cansada de pensar no futuro, e que acha que a penúltima coisa da vida dela vai ser o casamento e a última vai ser a viagem de lua de mel, e que depois disso vai ser uma imagem congelada de um beijo e uma música de violinos tocando em loop até o final dos tempos.

Eu sou o taxista que pega um passageiro à noite para uma corrida longa, pergunta a ele de onde é aquele sotaque, recebe a resposta, diz que já morou lá, o passageiro pergunta o que ele fazia, ele diz que jogava futebol, o passageiro manda acender a luz interna do táxi, ele acende, o passageiro olha a cara dele e diz: “Adroaldo, lateral-esquerdo do Juventus!”, e ele grita: “Está paga a corrida!”.

Eu sou aquele cara que acorda no meio da noite silenciosa, aterrorizado, lembrando que pediu emprestado a um amigo um captador de violão caríssimo, 28 anos atrás, e agora não lembra mais se devolveu ou não.

Eu sou a dona de casa que desenvolveu um sistema memorizador de todas as coisas da casa, por ordem alfabética, e antes de dormir vai repassando todas, uma por uma, enquanto discute com o marido fleumático que fala, “minha filha, vem te deitar, aproveita que eu tou novo ainda”.

Eu sou o cara que um dia toma um pileque e vai bater na porta da casa onde morou quando menino, e não consegue explicar à família assustada que quer apenas saber se o carrinho que enterrou no quintal continua a salvo dos ladrões, dos meninos invejosos, da chuva, da ferrugem, do moinho implacável do Tempo.

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