terça-feira, fevereiro 14

História do futuro

A velha máquina do mundo arqueja,
arqueja, não pode mais, não pode
mais...
A torcida
de um lado e outro grita:
Pode! Não Pode! Pode! Não pode! Pode!
A velha máquina, obsoleta como essas comovedoras
criaturas a quem apelidaram Ford de bigode,
a velha máquina, num derradeiro esforço,
explode: — pifff...
Mal se ouviu.
Uns riem.
Outros, os últimos românticos, arrepelam-se: “Então
isto é explosão
que se preze? Onde é que está
onde é que está aquele último dó de gavetão
como só os pode soltar um verdadeiro leão
no seu canto de cisne?!”
Ora, depois que se dissipou no ar a última fumacinha,
os curiosos, isto é, os sádicos
foram-se aproximando na ponta dos pés:
aquilo estava irreconhecível... pura, pura sucata! Mas
o Canhoto apontou no seu canhenho:
“Avisar Abraão para avaliar.”
Só ele, na perplexidade universal,
só ele, o Canhoto, é que tinha razão.
Porque a sucata,
na verdade
— seja o que for
que tenha sido —
é um mero estado transitório do material em disponibilidade.
Não tem nada de trágico.
A sucata é o material em férias...
Alegremo-nos, irmãos.
Amigos e inimigos, demo-nos todos as mãos
e dancemos de roda em redor dos destroços
sobre o chão da miséria...
Dancemos e cantemos
— chocalhando os ossos —
a nossa
mais esperançosa canção.
Porque a sucata quanto mais sucata
mais pode vir a ser UMA OUTRA COISA!

Mário Quintana, "Caderno H"

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