sábado, fevereiro 11

O romance do Nordeste

Nestes quatrocentos anos de colonização literária recebemos a influência de muitos países. Sempre tentamos reproduzir com todas as minudências a língua, as ideias, a vida de outras terras. Não sei donde vem esse medo que temos de sermos nós mesmos. Queremos que nos tomem por outros.

Talvez seja porque entre nós é fácil um preto casar com uma branca, uma preta viver com um branco, sem casar. Os mulatinhos escondem-se dos pais e, com o intuito de clarear a descendência, sujaram-se de pó de arroz e imitaram os modos dos estrangeiros. A religião negra, a arte negra, tudo quanto a África nos podia dar foi sufocado pelo ingênuo desejo de arianizar isto depressa.

Havia em Portugal uma certa quantidade de gramáticos. Arranjamos gramáticos mais numerosos e procuramos há alguns anos escrever melhor que os portugueses. Nunca houve lugar no mundo onde se discutisse tanta sintaxe.
Tudo nos vinha de fora.

Na literatura de ficção é que a falta de caráter dos brasileiros se revelou escandalosamente. Em geral os nossos escritores mostraram uma admirável ignorância das coisas que estavam perto deles. Tivemos caboclos brutos semelhantes aos heróis cristãos e bem-falantes em excesso. Os patriotas do século passado, em vez de estudar os índios, estudaram tupi nos livros e leram Walter Scott. Tivemos Damas das Camélias em segunda mão. Tivemos paisagens inúteis em linguagem campanuda, pores do sol difíceis, queimadas enormes, secas cheias de adjetivos. Descrições. José Veríssimo construiu um candeeiro em não sei quantas páginas.

Muito pouco — rios, poentes cor de sangue, incêndios, candeeiros.
Os ficcionistas indígenas engancharam-se regularmente na pintura dos caracteres. Não mostraram os personagens por dentro: apresentaram o exterior deles, os olhos, os cabelos, os sapatos, o número de botões. Insistiram em pormenores desnecessários, e as figuras ficaram paradas.

Os diálogos antigos eram uma lástima. Em certos romances os indivíduos emudeciam, em outros falavam bonito demais, empregavam linguagem de discurso. Dois estrangeiros, perdidos nas brenhas, discutiam política, sociologia, trapalhadas com pedantismo horrível que se estiravam por muitas dezenas de folhas. Via-se perfeitamente que o autor nunca tinha ouvido nada semelhante ao palavrório dos seus homens.

Felizmente, vamo-nos afastando dessa absurda contrafação de literaturas estranhas. Os romancistas atuais compreenderam que para a execução de obra razoável não bastam retalhos de coisas velhas e novas importadas da França, da Inglaterra e da Rússia. E como deixaram de ser obrigatórias as exibições da porta do Garnier, os provincianos conservaram-se em suas cidadezinhas, acumulando documentos, realizando uma honesta reportagem sobre a vida no interior.

O trabalho que há no Nordeste é mais intenso que em qualquer outra parte do Brasil, tão intenso que um crítico, visivelmente alarmado com as produções daqui, disse ultimamente que não é só no Norte que se faz literatura. Decerto. Era indispensável, porém, que nossos romances não fossem escritos no Rio, por pessoas bem-intencionadas, sem dúvida, mas que nos desconheciam inteiramente.

Hoje desapareceram os processos de pura composição literária. Em todos os livros do Nordeste, nota-se que os autores tiveram o cuidado de tornar a narrativa não absolutamente verdadeira, mas verossímil. Ninguém se afasta do ambiente, ninguém confia demasiado na imaginação.

E é assim que deve ser. Se o Sr. Gastão Cruls vivesse aqui, não teria podido escrever o seu Vertigem. Apesar de médico e romancista, foi-lhe necessário estar habituado à cidade grande.

Também não seria possível a um carioca, ainda que tivesse visitado o interior do Ceará, conceber e realizar o João Miguel. Para fazê-lo a Sra. Rachel de Queiroz consumiu largo tempo examinando uma prisão da roça, registrou as palavras do cabo Salu, conversou com a Filó, viu como ela enchia o cachimbo de barro.

O Sr. Lins do Rego criou-se na bagaceira dum engenho, e julgo que nem sabe que é bacharel. Conservou-se garoto de bagaceira, o que não lhe teria acontecido se morasse no Rio, frequentando teatros e metendo artigos nos jornais. Aqui está bem. Quando o cheiro das tachas vai esmorecendo, dá um salto a uma engenhoca, escuta Zé Guedes, seu Lula, a velha Sinhazinha.

O Sr. Jorge Amado nasceu numa fazenda no sul da Bahia — e por isso escreveu Cacau. Instalou-se depois na ladeira do Pelourinho, 68, onde travou relações com várias criaturas que entraram na composição do seu último livro.

Esses escritores são políticos, são revolucionários, mas não deram a ideias nomes de pessoas: os seus personagens mexem-se, pensam como nós, sentem como nós, preparam as suas safras de açúcar, bebem cachaça, matam gente e vão para a cadeia, passam fome nos quartos sujos duma hospedaria.

Os nossos romancistas não saíram de casa à procura de reformas sociais: a revolução chegou a eles e encontrou-os atentos, observando uma sociedade que se decompõe.

Está claro que ninguém aqui pretende haver construído monumentos. Estamos ainda no começo, mas um excelente começo que nos dá grande quantidade de volumes todos os anos.

Nessa produção excessiva há falhas, topadas, marcas de trabalho feito à pressa. Naturalmente porque estamos a correr sem nos termos acostumado a andar.
O que é certo é que o romance do Nordeste existe e vai para diante. As livrarias estão cheias de nomes novos. Não é razoável pensarmos que toda essa gente escreva porque um dia o Sr. José Américo publicou um livro que foi notado com espanto no Rio:

— Um romance do Nordeste! Que coisa extraordinária!
Graciliano Ramos, "Garranchos"

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