sexta-feira, fevereiro 10

No desconcerto do mundo

Depois de todas as calamidades e ruindades que sobre mim se abateram, confesso que não estava à espera de um milagre desta natureza, nem acreditava na bondade do mundo, capaz de inverter a malfadada andança dos alcatruzes da minha desdita.

Mas quem haveria de me dizer, Vossa Senhoria, que todos estes prodígios tombariam sobre mim em terra tão distante das minhas origens e tudo por causa de um irmão que eu desconhecia existir, muito versado nas artes mecânicas e liberais de Caco, provando assim ser assaz verdadeiro aquele anexim que meu pai cochichava ao borralho, mais atestado do que um odre a seguir às vindimas, mirando minha mãe de esguelha, de que não há cão sem pulgas, nem linhagem sem ladrão ou puta.

Nascem uns com a cara virada para as boas estrelas, os bons fados, mas outros germinam com as nalgas espetadas para as más estrelas e os maus fados. Que potestade será essa que, nos acasos dos nossos dias, maliciosamente se esconde e assim manipula os astros do nosso fadário? Que deidade, ao longo do nosso transcurso, decide quais os Bojadores ou os Adamastores a dobrar?

Com estas e outras cogitações em mente, atravessei o Guadalquivir pela Puente de las Barcas em direcção ao bairro a que dão o nome de Triana, na outra margem do rio, e daí para o casinhoto de meu irmão, em San Juan de Alfarache, a fim de inaugurar um novo tempo, livre de tristezas, durezas e asperezas, que de abronhos já estava farto, sempre a viver, nos avessos da fortuna, o desconcerto do mundo.
Paulo Moreiras, "A Vida Airada de Dom Perdigote"

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