quinta-feira, fevereiro 2

Gabriel García Márquez

A primeira vez que me encontrei com ele foi naqueles idos de 1960, em Salvador de Bahia. Para ser exato, na Livraria Civilização, nos tempos áureos da Rua Chile. Quem me chamou a atenção por seu livro Cem Anos de Solidão foi o Alberto Silva, companheiro de geração, redator de jornal com um texto primoroso, tinha queda para ser cineasta, por enquanto pesquisava os caminhos do cinema, exercitando a crítica da sétima arte. Ele me disse: “Eis um livro escrito por autor com maiúscula e de mão cheia”. Depois que li o livro do autor colombiano, senti quanto meu amigo tinha razão. Era um romance surpreendente, de intensa carga poética. Epopeia trágica, sedenta de solidão e truculência. O maior acontecimento da novela espanhola, depois de Dom Quixote, estava certo Mário Vargas Llosa, outro grande da novelística ocidental no século XX, quando se referiu ao livro.

Encontrei com o autor do romance impactante pela segunda vez no mesmo lugar da primeira. Fiquei sem palavras, peguei no seu braço para saber se era feito de carne e osso. Ele estranhou meu gesto, mas sorriu. Perguntei como foi que escrevera um romance de extraordinária força imaginativa mesclada com as alusões de insólito lirismo. Respondeu que escreveu para não morrer. Acrescentou que, se escrever, morro e, se não escrevesse, também morria. Que se podia fazer? Observou que primeiro gostava de ouvir o avô contar histórias, daí um dia começou a gostar de escrevê-las. Do destino ninguém foge, mas escrever para mim é também uma escolha, disse, refletindo no rosto um forte brilho. “É meu modo de conviver com os sonhos, espantar fantasmas”, finalizou.

Também, pudera, Gabo, quem escreve um romance magnífico como Cem Anos de Solidão não precisa escrever mais nada, nem provar nada a ninguém. “Quem te disse isso?”, meio curioso, perguntou. “Eu que achei, tenho certeza que qualquer um acha, dando razão ao que afirmo, demais essa sua sacada”, observei convicto. Falou que estava assustado com o impacto que seu romance vinha causando entre críticos e leitores. Nunca pensou nisso, queria ver onde tudo ia parar. Um dia seria esquecido, pois tudo que é vida morre. Ele quis saber como foi que eu tomei conhecimento que ele era chamado de Gabo, carinhosamente, entre os íntimos. “Numa reportagem de um jornalista colombiano”, disse. Ele soltou um sorriso agradável, então percebi como o chamamento fazia-lhe bem, acenava afetos no tempo longínquo.

Depois do último encontro, nunca mais me encontrei com ele.


Sei que você não sabe, mas adianto que tenho a mania de quando estou dirigindo o automóvel ficar ouvindo música de Beethoven, Chopin, Mozart, Vivaldi, Haendel, Tchaikowsky ou Bach, conforme a ordem que costumo colocar no aparelho de som. Ouço um deles de cada vez, repetidas vezes. Depois de alguns dias é que começo a ouvir outro desses compositores maiores de todos os tempos. Eles me ajudam a pensar a vida pelo som. Levitar e esquecer a morte. Mas prazer intenso e melhor que tenho é quando estou na companhia de um desses escritores que me dizem ser a vida falha, mas que a linguagem literária salva porque encanta. Daí a alegria que tive quando encontrei pela terceira vez Gabo no jardim da prefeitura, localizado na avenida beira-rio, em minha cidade natal. Um jardim que já foi cartão postal da cidade, hoje anda de visual feio, pelo descaso dos prefeitos, que nada fazem para que aquele espaço de lazer e bem-estar conserve a beleza de antigamente, quando dava gosto de ser frequentado por criança ou gente grande. Tinha flores, fonte luminosa e coreto.

Lá estava Gabo, sentado no banco, cabelos brancos, tentando com os olhos profundos tocar na linha do horizonte. Conversava sobre a idade das águas com dois amigos, envelhecidos como ele na passagem da vida. Soltou o sorriso amigo no gesto calmo do rosto quando cheguei perto dele. Apertei a mão daquele senhor que nem parecia um inventor de esplendores metafóricos com a palavra abençoada na prosa saborosa, alquimista da poesia da vida em narrativa lírica, de tão simples que se mostrava naquele momento de fim de tarde com os amigos. Sua voz serena não deixava dúvida de que era um homem acumulado de muitas juventudes. Pensei, seu romance Cem Anos de Solidão, lido por mim pela segunda vez recentemente, depois de tantos anos permanecia cheio de surpresas, vitalidade de mundos encontrados e força criativa de sonhos que se confundem no ritmo expansivo de enormes solidões. Permanecerá como o eterno riscado num instante, enquanto exista gente que goste de ler a literatura mais intensa, carregada de sentidos. Despedi-me dele, temendo que aquela seria a última vez que iria encontrar-me com o magnífico autor de Cem Anos de Solidão.

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