sexta-feira, abril 28

1919

A violência inicial de Shadrack havia coincidido com um memorando da equipe executiva do hospital referente à distribuição de pacientes em áreas de alto risco. Havia uma clara necessidade de espaço. A prioridade ou a violência garantiu a baixa de Shadrack, 217 dólares em dinheiro, uma mala cheia de roupas e cópias de documentos que pareciam bastante oficiais.

Quando pôs os pés fora do hospital, os jardins o desarmaram: os arbustos podados, o gramado delimitado, as trilhas sem desvios. Shadrack olhou para os trechos cimentados: cada um deles levava lucidamente a um destino supostamente desejável. Não havia cercas, nem avisos, nem obstáculos entre o concreto e a grama verde, portanto era fácil ignorar a passagem ordenada de pedras e cortar na direção oposta — uma direção própria.

Shadrack ficou parado aos pés da escadinha do hospital observando a cabeça das árvores balançando pesarosa mas inofensivamente, já que os troncos tinham raízes profundas demais na terra para ameaçá-lo. Somente as trilhas o inquietavam. Ele se reequilibrou na outra perna, se perguntando como chegar ao portão sem pisar no concreto. Enquanto tramava seu caminho — onde teria que saltar, onde contornar um monte de arbustos —, uma gargalhada alta o assustou. Dois homens subiam os degraus. Então percebeu que havia muitas pessoas ao redor, e que só agora as via, se não tinham acabado de se materializar. Eram folhas finas, como bonecos de papel flutuando pelas trilhas. Algumas estavam sentadas em cadeiras de rodas, empurradas por outras figuras de papel. Todas pareciam fumar, e os braços e pernas se curvavam à brisa. Um bom vento forte os arrebataria e levaria para longe e talvez aterrissassem entre as copas das árvores.

Shadrack se arriscou. Quatro passos e estava no gramado, rumo ao portão. Manteve a cabeça abaixada para não ver as pessoas de papel se virando e se curvando aqui e ali, e se perdeu no caminho. Ao erguer os olhos, estava junto a um prédio baixo vermelho separado do prédio principal por uma passagem coberta. Surgiu de algum lugar um aroma adocicado que o lembrava de alguma coisa dolorosa. Olhou ao redor à procura do portão e viu que tinha seguido exatamente na direção contrária em seu percurso complexo pelo gramado. Bem à esquerda do prédio baixo havia uma pista de cascalho que parecia levar para além das dependências do hospital. Trotou rapidamente até lá e deixou, por fim, um refúgio de mais de um ano, apenas oito dias dos quais se recordava na íntegra.

Depois de chegar à estrada, seguiu na direção oeste. A longa estadia no hospital o deixara fraco — fraco demais para se equilibrar de pé no acostamento de cascalho da estrada. Arrastou os pés, ficou tonto, parou para respirar, recomeçou, tropeçando e cheio de suor mas se recusando a enxugar as têmporas, ainda com medo de olhar para as mãos. Passageiros de carros quadrados, escuros, fechavam os olhos para o que pensavam ser um bêbado.

O sol já estava bem em cima de sua cabeça quando chegou a uma cidade. Alguns quarteirões de ruas sombreadas e já estava em seu âmago — um centro bonito, silenciosamente regrado.

Exausto, os pés congestionados de dor, sentou-se no meio-fio para tirar os sapatos. Fechou os olhos para não ver as mãos e se atrapalhou com os cadarços dos sapatos pesados de cano alto. O enfermeiro os amarrara em nós duplos, como se faz para crianças, e Shadrack, havia muito desacostumado à manipulação de coisas complicadas, não conseguia desatá-los. Descoordenadas, as unhas de seus dedos puxavam os nós. Lutou contra uma histeria nascente que não era mera ansiedade de libertar os pés doloridos; sua vida dependia da soltura dos nós. De repente, sem levantar as pálpebras, começou a chorar. Vinte e dois anos de idade, fraco, suado, assustado, sem coragem de admitir que nem sabia quem ou o que ele era… sem passado, sem linguagem, sem tribo, sem origem, sem caderneta de endereços, sem pente, sem lápis, sem relógio, sem lenço de bolso, sem tapete, sem cama, sem abridor de lata, sem cartão-postal desbotado, sem sabonete, sem chave, sem bolsa para guardar fumo, sem cueca suja e nada nada nada para fazer… só tinha certeza de uma única coisa: a monstruosidade descontrolada de suas mãos. Chorou em silêncio no meio-fio de uma cidadezinha do Meio-Oeste, se perguntando onde estava a janela, e o rio, e as vozes suaves junto à porta…

Em meio às lágrimas viu os dedos se unindo aos cadarços, primeiro hesitantes, depois ligeiros. Os quatro dedos de cada mão se misturaram ao tecido, se enrolaram e ziguezaguearam para dentro e para fora dos minúsculos ilhós.

Quando a polícia chegou, Shadrack já estava sofrendo de uma dor de cabeça lancinante, que não foi aplacada pelo alívio sentido quando os policiais tiraram suas mãos do que ele imaginava ser um enredamento permanente nos cadarços de seus sapatos. Eles o levaram para a cadeia, ficharam por vadiagem e embriaguez e o trancaram em uma cela. Deitado em um catre, só restava a Shadrack fitar a parede com impotência, de tão paralisante que era a dor na cabeça. Ficou deitado em agonia por bastante tempo e depois se deu conta de que fitava letras pintadas ordenando que fosse se foder. Enquanto examinava aquelas palavras, a dor na cabeça ia diminuindo.

Como o luar se esgueirando sob uma veneziana, uma ideia se insinuou: o desejo antigo de ver o próprio rosto. Procurou um espelho; não havia nenhum. Por fim, tomando o cuidado de manter as mãos às costas, foi até o vaso sanitário e espiou. A água estava desigualmente iluminada pelo sol, então não conseguiu ver nada. Voltando ao catre, pegou o lençol e cobriu a cabeça, deixando a água escura o suficiente para ver seu reflexo. Ali, na água do vaso, viu um rosto preto sério. Um preto tão definitivo, tão inequívoco, que o espantou. Vinha cultivando uma apreensão medrosa de que ele não era real — de que não existia. Mas, quando o negror o saudou com sua presença incontestável, não lhe faltou mais nada. Naquela alegria, se arriscou a soltar uma ponta do lençol e dar uma olhada nas mãos. Estavam paradas. Cortesmente paradas.

Shadrack se levantou e voltou ao catre, onde caiu no primeiro sono de sua nova vida. Um sono mais profundo do que as drogas do hospital; mais profundo do que caroços de ameixa, mais imperturbável do que a asa de um condor; mais tranquilo do que a curvatura dos ovos.

O delegado olhou por entre as barras para o rapaz de cabelo emaranhado. Tinha lido os documentos do presidiário e chamado um fazendeiro. Quando Shadrack despertou, o delegado lhe devolveu os documentos e o acompanhou até a traseira de uma carroça. Shadrack entrou e em menos de três horas estava de volta a Medallion, pois estivera a apenas trinta e cinco quilômetros de sua janela, seu rio e as vozes suaves junto à porta.

Na traseira da carroça, escorado por sacas de abóboras e colinas de jerimuns, Shadrack deu início a uma luta que duraria doze dias, uma luta para ordenar e enfocar experiências. Tinha a ver com a criação de um espaço para o medo como forma de controlá-lo. Conhecia o cheiro da morte e tinha pavor dele, pois não era capaz de prevê-lo. Não era a morte ou morrer o que o amedrontava, mas a imprevisibilidade de ambos. Ao esmiuçar tudo isso, chegou à ideia de que, caso um dia do ano fosse dedicado ao tema, todo mundo poderia tirá-lo do caminho e o restante do ano seria seguro e livre. Foi assim que ele instituiu o Dia Nacional do Suicídio.

Toni Morrison, 'Sula"

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