quinta-feira, abril 20

Duas e três

Levei um susto quando aquela voz soprou em minha nuca:

- Se tu é bom, mata essa: “Não durmo no Rio porque tenho pressa; duas e três.”

Voltei-me para ver quem falava. Era um homem quarentão, alto e gorducho, de roupas imundas, rasgadas, e cara encardida. Uma cara simpática de gângster regenerado.

Ele ria:

- Mata essa, vamos!

Era de manhã cedo, em junho, e fazia um frio agradável. Acordara e, sem ter para onde ir, sentei-me naquele banco da praça Floriano, em frente à Biblioteca Nacional, à espera de que ela abrisse. Meu velho terno marrom esfiapava nas mangas, o sapato empoeirado, a barba por fazer. “Esse homem está me tomando por um vagabundo”, pensei comigo. E achei divertido.

- Matar o quê?

- A charada, meu besta!

O velho se debruçava em cima de mim, com um riso gozador. Fedia a suor e molambo. Afastei-o um pouco, com o braço e, meio sem saber o que fizesse, acedi.

- Como é mesmo a charada?

- Só repito esta vez, tá bom? “Não durmo no Rio porque tenho pressa; duas e três”

Sempre fui um fracasso para matar charadas. Fiz um esforço para penetrar nas palavras, mas em vão.

- Digo mais. – esclareceu-me o vagabundo. – Chaves: “Não durmo no Rio” e “Rio”. Conceito: “pressa” ... Mas você é burro, hei.

Donde diabo viera aquele cara impertinente, para me obrigar a resolver uma charada àquela hora da manhã? Mas meu orgulho estava em jogo. Pensava e o pensamento escapulia.

- Não consigo decifrar. Não me amola.

- Então você perdeu.

- É, perdi.

- Então paga.

- Paga o quê?

- Duas pratas, meu Zé. Você perdeu!

Era incrível. Comecei a rir. Ele também ria e dizia: “Paga, duas pratas.” Dei-lhe uma cédula de dois cruzeiros e fiquei ali rindo enquanto ele se afastava arrastando seus sapatos furados.

Semanas depois, estava eu no Passeio Público, quando ele veio com a mesma conversa, como se nunca me tivesse visto. “Mata essa: não durmo no Rio, porque tenho pressa; duas e três.” Respondi-lhe em cima da bucha: “Não durmo, velo; no Rio. Cidade: velocidade. “Ele ficou desapontado. “Você perdeu”, disse-lhe eu. “Paga duas pratas.” Olhou-me sério, meteu a mão no bolso e estendeu-me duas notas imundas. Fomos tomar juntos um café na Lapa.
Ferreira Gullar, "O melhor da crônica brasileira"

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