segunda-feira, abril 3

De como é cruel a literatura

Já no primeiro livro que leu, o menino sentiu como pode ser cruel a literatura. Na página inicial apareceu um passarinho que voou e cantou até a página dois, quando acabou na barriga de um gato chamado Devagar.

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Por mais que nos venhamos a esforçar, nunca seremos mais do que já somos. Por nós não hão de os sinos badalar e nem chorar por nós os cinamomos.

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Ao selecionar as roupas do velho poeta morto, para doação, a viúva teve um momento de indignação. Num paletó encontrou um papel. Era um endereço. Já havia começado a maldizer o defunto quando atinou com o que era aquilo: indicações de como chegar ao monte Parnaso.

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Olhe, com vocês eu não sei se falha a natureza. Comigo, não. Eu plantei queixumes, colhi tristeza.
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No sonho, sorriu e foi-se, seguindo a mulher que tinha na mão esquerda uma bíblia e na mão direita uma foice.

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Não é verdade que eu tenha proposto uma campanha de salvação dos sonetos. Cheguei a pensar nisso, mas não havia mais o que fazer por eles. Tinham sido declarados mortos, discutindo-se apenas se viriam a ser incluídos na sentença um de Dante, dois de Shakespeare e três de Camões.

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A ambição, tão celebrada pelos manuais de autoajuda como essencial para todas as conquistas, incluindo as literárias, foi a causa de minha desgraça. Ambicionei os sonetos. Devia ter me contentado com as quadrinhas, com as trovinhas.

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Alguém me disse que a vida é sempre mais importante que a literatura. Mas eu era jovem demais, e tão bobinho.
Raul Drewnick

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