segunda-feira, abril 17

Uma espécie de sobrevivente

Para Elie Wiesel

Não literalmente. Graças à previdência do meu pai (que a revelara já ao deixar Viena em 1924), cheguei á América em Janeiro de 1940, ainda no período da " estranha guerra" (drôle de guerre). Partimos de França, onde nasci e fui criado , e pusemo-nos a salvo. Aconteceu assim que não estava lá , quando começou a chamada. Não estava na praça pública ao lado das outras crianças, entre as quais cresci. Nem vi o meu pai e a minha mãe desaparecerem depois de as portas de comboio se abrirem bruscamente. Mas, em certo sentido, sou um sobrevivente e não fiquei intacto. Se muitas vezes me sinto estranho à minha geração, se aquilo que me persegue e controla a minha maneira de sentir impressiona como qualquer coisa de vagamente inquietante e artificial muitos daqueles dos quais deveria sentir-me próximo , trabalhando com eles no meu mundo presente, é porque o negro mistério do que aconteceu na Europa é, para mim, inseparável da minha identidade. Precisamente porque não estive lá, porque um acaso afortunado fez com que o meu nome não constasse da lista.

Muitas vezes, as crianças iam sozinhas , ou pela mão de estranhos. Acontecia por vezes que os pais viam os filhos passar e não se atreviam a chamá-los. E era assim, evidentemente , não por qualquer coisa que as crianças pudessem ter feito ou dito. Era assim, porque, antes delas, tinham existido os seus pais. O seu crime era serem filhas de quem eram. Para ele , durante o nazismo, não havia absolvição nem prescrição. Haverá agora? Aqui ou ali, a determinação de matar os judeus, de os varrer da face da Terra pelo simples facto de existirem, continua viva e activa. Habitualmente, trata-se de um propósito tácito, ou revelado em explosões banais: as palavras obscenas pintadas na porta ou o tijolo arremessado contra a montra da loja. Mas , hoje mesmo, há lugares onde o desígnio assassino poderá assumir um novo fôlego: na Rússia, em certas zonas do Norte de África, nalguns países da América Latina. E amanhã, onde? Por isso, há momentos, quando vejo os meus filhos na sala, ou imagino ouvi-los respirar no silêncio da casa, em que tenho medo. Porque lhes pus em cima dos ombros o fardo de um ódio antigo e os expus à perseguição da barbárie. Porque poderá acontecer que eu não venha a saber protegê-los melhor do que os pais das crianças abandonadas.

Este medo habita perto do nó mais fundo do modo como me penso como judeu. Ser-se judeu europeu na primeira metade do século XX era pronunciar uma sentença de condenação dos próprios filhos, impor-lhes uma condição quase para além do que se pode racionalmente conceber. E é possível que a história se repita. Tenho de pensar assim - trata-se de uma cláusula vital - tanto quanto a realidade da recordação permaneça. Talvez nós, os judeus, nos mantenhamos mais próximos dos nossos filhos do que os outros seres humanos; por mais que o tentem , eles não podem saltar por cima da nossa sombra.

Tal é a minha autodefinição. A minha , porque não posso falar porque não posso falar por nenhum judeu. Todos nós temos, como é óbvio, alguma coisa em comum. Tendemos a reconhecer-nos uns aos outros onde quer que nos encontremos , quase ao primeiro relance, por este ou por aquela inflexão compulsiva de afeto que nos é comum, talvez pela treva que carregamos conosco. Mas cada um de nós tem de se haver a sós com a sua condição. É esse o verdadeiro sentido da diáspora, da grande diáspora e da diluição da crença.

George Steiner, 'Linguagem e silêncio"

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