— Tio, tio! Comeram o cabrito!
O velho sai aos desengonços, tropernando pelas escadas do machimbombo. Primeiro, fica parado, perplexo, a digerir névoas. Depois vai pilando raivas, mãos à cabeça, espicaçador.
— Quem disse para amarrar a merda do cabrito aqui?
Grita com superiores ganas de rachar o mundo. Segura a ponta da corda, sacode-a perante o nariz. Muidinga se admira de tais fúrias. Que lamentava o velho assim tão espalhafarto?
— Deve ter sido uma hiena, tio...
O velho, ríspido, agarra a cabeça do rapaz e lhe esfrega a corda no rosto.
— Veja essa corda, satanhoco. Veja!
O pobre miúdo nem que quisesse. A mão do velho lhe alicateia o pescoço, dobrando seu fracturável corpo sobre os infernos. Me largue, tio. É a súplica que ele consegue, já tombado nos joelhos.
— Veja aqui, grita Tuahir. Cortaram essa corda com faca!
Muidinga se arrepinha. Quem estivera ali com tais laminosas intenções? Agora ele entende a fúria do velho. Um cabrito atado só servia para agarrar os olhos dos passeantes.
— Mas, tio, não nos encontraram...
— Não fala comigo.
Os azedos de Tuahir não esvanecem durante o restante dia. A noite decorre de olhos abertos, vigilantes. O matador do cabrito regressaria? O miúdo se interroga: quem seriam os nocturnos saltinhadores? Matsangas? Naparamas? Simples esfomeados? Quem era que tinha sido não voltou naquela noite. Quando amanhece Muidinga se achega ao velho e se desculpa:
— Não volto a fazer sem lhe ouvir.
Tuahir está mais amolecido, respirando aliviado. Fomos salvos pelo machimbombo estar queimado, disse ele. E acrescentou:
— Os que vieram não voltam mais. Podemos descansar...
De novo, a morna monotonia se instala. Para distrair o tempo, tiram o banco para fora do autocarro e colocam-no no meio da estrada. Sentam-se a apanhar sol, com mais prazo que os lagartos. Muidinga repara que a paisagem, em redor, está mudando suas feições. A terra continua seca mas já existem nos ralos capins sobras de cacimbo. Aquelas gotinhas são, para Muidinga, um quase prenúncio de verdes. Era como se a terra esperasse por aldeias, habitações para abrigar futuros e felicidades. Mas o mato selvagem não oferece alimento para quem não conhece seus segredos. E a fome começa a beliscar a barriga daqueles dois. O estômago de Muidinga ronrona. O velho lhe pede contas:
— Tem fome, não é, miúdo? Quem lhe mandou poupar o cabrito?
O moço está derreado, parece ter regressado ao estado da doença. Está quase parente da estrada, parado e poei-roso. O velho Tuahir se aborrece com a apatia do jovem.
— Já esqueceu falar, outra vez? É da fome isso. Sabe o que você faz? Você engole com força. É, engole saliva, faz conta está entrar comida na garganta. A fome fica confusa, assim.
O velho executa, por gestos, a sua própria sugestão. Muidinga não reage. Tuahir ganha um súbito interesse no rosto do rapaz como se estudasse ali os espelhos baços do seu interior. Se levanta, ele e a sua voz, trabalhando juntos numa fúria:
— Você ainda continua com essa mania de encontrar seus pais? Está proibido! Ouviste? Nem quero lhe ver pensando nesse assunto. Nunca mais.
Vê-se que se controla para não pontapear o moço, se nota um brilho de violência como se houvessem dentes no seu olhar. Parte os ramos de um arbusto, empurra o banco onde o miúdo permanece sentado.
— Olha, lhe vou dizer uma coisa: seus pais faleceram. Sim, eles foram mortos com balas de bandidos. É por causa disso eu sempre estou insistir: abandona essa merda de ideia.
Vira costas. Muidinga parece impassível, sua alma desenhada só em diagonal. Era como se já soubesse, tudo aquilo não constituísse novidade nenhuma. Ou quem sabe não acreditasse na verdade da revelação. Ali ficou, estagnado o resto da manhã. É quase meio-dia quando Tuahir o sacode para anunciar que devem partir pelas redondezas. Era urgente procurar alimento, arranjar mais água.
— Vai-se ou não-se?
O moço se ergue, silencioso. E partem, o miúdo segue atrás, contrariado. Aquela era sua primeira incursão pelos matos. A ela se haveriam de seguir outras. Em nenhuma dessas visitas eles se afastariam demasiado do autocarro. Desta primeira vez, eles se descaminham pelo mato, por tempos demorados. Muidinga receia perder o caminho do regresso. E se o velho se perdesse e nunca mais dessem com o machimbombo?
— Qual é o problema, Muidinga?
— Estou a pensar se nos perdemos...
— Se não voltarmos à estrada não perdemos nada.
Era verdade: que valores arrecadava o autocarro agora que as reservas de comida se esgotavam? Porém, para Mui-dinga, não regressar seria enorme desgosto. Ele se admira: o que o prendia àqueles destroços na estrada? Então, lhe veio a resposta clara: eram os cadernos de Kindzu, as estórias que ele vinha lendo cada noite. E sente saudade das linhas, tantas quantos os passos que agora desfia pelos atalhos.
Ao fim da tarde chegam, enfim, a uns antigos terrenos de machamba. Tudo fora abandonado, as culturas se tinham perdido, castanhamente. A terra toda se despira, esperando em vão receber o beijo do arado. Aquelas visões ainda mais os esfaimam, fazendo-os arrotar o seu próprio jejum. O velho se senta numa clareira, na margem da antiga machamba. Recolhe em seu redor secos restos de mandioca. É a única cultura que resta, a única que resistiu à seca. Sacode as raízes e nota dentadas na casca.
— Merda! Os ratos chegaram primeiro.
Quando Muidinga se prepara para comer Tuahir grita:
— Não comas!
O velho junta às pressas os paus de mandioca e lança--os no capinzal. Andarilha às voltas a curar os nervos. Depois, se senta junto do rapaz e lhe fala:
— Vou-lhe contar, miúdo. Foi por causa de mandioca dessa que você apanhou doença.
— Tuahir, me conte tudo. Me conte como me encontrou.
O velho, enfim, acede. Limpa o chão onde se vai sentar em preparativo de que se iria demorar. E conta: ele estava no campo de deslocados, vindo de sua aldeia distante. Uma noite lhe pediram para ajudar a enterrar seis crianças recém-falecidas. Os corpos estavam numa cabana, por baixo de uma velha lona. Ninguém sabia quem eram, de onde tinham vindo, a que famílias pertenciam. Estavam despidas, suas roupas tinham sido roubadas mal as crianças perderam força para se defenderem. Tuahir ajudou a arrastar os corpos para um buraco. Enquanto puxava pelas pernas frias se admirava daquele peso tão diminuto. Olhava os braços ondeantes como ramos ossudos, esqueletudos, quando reparou com espanto: os dedos de uma das crianças se cravavam no chão. Não havia dúvida, aqueles dedos se agarravam à vida, lutando contra o abismo. Aquela criança ainda respirava. Era a mais clara e a mais raquítica de todas.
— Parem, aquele miúdo ainda está vivo!
Os restantes coveiros se entreolham, duvidosos. E voltam a puxar os corpos: haver um vivo nada altera. Tuahir suplica que parem, os outros se imperturbam. Aqui se enterram os moribundos em viagem sem regresso. O velho sai do grupo, não tem coragem para sepultar um vivente. Já o menino se afundava em areias que atiravam no buraco quando ele se recordou:
— Deixem esse: é meu sobrinho...
— E você cuida dele?
— Sim, eu lhe trato.
E foi assim. Nos princípios, o miúdo só pronunciava estranhas gemências. Passaram-se dias, sem outro alimento que não fosse água. O menino permanecia dobrado em si, vomitando, dolorido da cabeça aos pés. Sem se mexer, ele já trincava seu fim. Tuhair lhe pedia que se levantasse e se mantivesse de pé, nem que fosse por breves tempos. Com ajuda, o moribundo se sustinha. O velho lhe ordenava:
— Veja no chão!
Muidinga olhava para o chão, nada notava. Mas as tonturas lhe dificultavam os vistos. O que era que o velho apontava?
— Não vês que perdeste a tua sombra?
Era verdade. Por mais que se inclinasse, o moço não produzia nenhuma sombra. Seu corpo parecia mergulhado em eterno meio-dia. Estremecia com o presságio. E o velho pensava: “este já não tem melhora”. Mas ainda assim, insistiu. Nessa altura, o moço ainda segurava algumas palavras. A voz lhe saía em sopro:
— Mas eu... o que eu tenho?
— Esta doença se chama mantakassa. Você comeu mandioca azeda, dessas amargas que fermentam venenos, dessas que chamamos de maquela.
— Ah, a mandioca... eu sei.
O velho tinha consciência do que iria acontecer em seguida. O menino desconhecia, no entanto, tudo que lhe esperava.
— Onde estão seus pais?
— Meus pais?
O menino cada vez mais se dificultava em falar, atarantonto. Ao ver a criança assim rarefeita, Tuahir sentiu descer-lhe da cabeça o coração. Puxou Muidinga pela mão e lhe prometeu:
— Não lhe vou abandonar. Não tenha medo, eu lhe tomo conta.
Tuahir cumpriu. A enfermidade trabalhava no rapaz. Seu corpo se vazava de peso. As humanas faculdades nele se esvaíam. O miúdo quase já não sabia falar, nem andar, nem sequer rir. A última pergunta que fez foi uma noite em que, contemplando seu sofrimento, Tuahir deixou escapar uma lágrima:
— Está a chorar de mim?
O velho nem deu resposta, negando com um sacudir de ombros. O miúdo, a seus olhos, já não surgia humano em si, todo. Só vagamente semelhava uma criança. Sua fala se engrunhia, seu corpo se tornava bravio.
— Se sabias da mandioca por que comeste então, miúdo?
O velho perguntou mas já sabia a resposta. A fome apertava de mais. Morrer por morrer mais valia ver o amanhã do sol. Muidinga nada respondeu. Apenas pediu que Tuahir chegasse pertinho. Suas forças se estavam a perder. A boca desaguava as últimas palavras, dali a pouco ele já não seria capaz de pronunciar nenhum pensamento. O velho segredou o seguinte conselho: quando morresse, para encontrar caminho do Céu, o miúdo devia escolher só os carreirinhos. Os grandes caminhos nunca lhe levariam lá. Procurasse, sim, os caminhinhos, trilhozitos entre as nuvens, feitos por pé de pouca gente. Depois, não mais falou. O peso da tristeza em sua alma o sufocava. Perder aquele menino, mesmo que desconhecido, era juntar, simultâneas, todas as variedades de dor.
— Dobra as pernas, depressa. Não podes morrer de pernas esticadas.
E o velho ajudou o miúdo a dobrar as pernas. Ficou à espera que a morte viesse. Passou-se tempo sem que o moço se tornasse em pessoa concluída. E se passou ao inverso do esperado. No dia seguinte, já Muidinga despertava, fortalecido. Era uma criança a nascer, quase em estado de saúde. O velho se contenta: seus filhos já quase não deixavam memória. Sentia saudade de ser pai, era como se voltasse a ser jovem.
— Te vais chamar Muidinga, decidiu.
Era o nome que tinha sido dado a seu filho mais velho, ido e esvaído nas minas do Rand.
Mia Couto, "Terra Sonâmbula"

Nenhum comentário:
Postar um comentário