quarta-feira, março 2

O que os olhos vêem

Depois de centenas de bilhões de anos, ele de súbito pensou em si mesmo como Ames. Não a combinação de comprimentos de ondas que era agora, através de todo o Universo, o equivalente de Ames, mas o som, o som daquele nome. Ele experimentou o ressurgir de uma memória muito tênue – a memória daquelas vibrações sonoras que ele já não captava e que nunca mais poderia captar.
Aquele novo projeto estava tornando sua memória mais sensível a tantas coisas antigas, coisas remotas, de muitos éons atrás. Ele comprimiu o vórtice de energia que constituía sua individualidade e suas linhas de força tornaram-se mais intensas, para além das estrelas.
Daí a pouco, captou o sinal de Brock, em resposta.
Claro que podia contar aquilo a Brock, pensou Ames. Claro que poderia contar a alguém.
O cambiante padrão energético de Brock alinhou-se ao seu.
-Não vem conosco, Ames?
-Claro.
-Vai tomar parte no cuncurso?
-Sim! – As linhas de força de Ames pulsaram de modo errático. – Com certeza. Estive pensando numa nova forma de arte. Algo... fora do comum.
-Um desperdício de esforço. Você acha que se pode pensar numa nova variação, depois de duzentos bilhões de anos? Não pode haver nada novo.
Por um instante Brock mudou de fase e saiu de alinhamento, de modo que Ames teve que ajustar às pressas suas linhas de força. Ele captou o perpassar de outros pensamentos enquanto o fazia – a visão da poeira nebulosa das galáxias de encontro ao veludo negro do Nada e as linhas de força que pulsavam em infinitas formas de vida energética, no espaço entre as galáxias.
Ames disse:
-Por favor, Brock, absorva meus pensamentos. Não se isole. Estou pensando em... em manipular Matéria. Imagine! Uma sinfonia de Matéria. Por que se preocupar com a Energia? Claro que não há nada de novo na Energia. Como poderia haver? E isso não significa que devemos nos voltar para a Matéria?
-Matéria!...
Ames interpretou as vibrações energéticas de Brock como de repulsa. Respondeu:
-Por que não? Já fomos Matéria certa vez, há... há... oh, não sei, talvez um trilhão de anos! Por que não construir objetos com alguma substância material, ou formas abstratas, ou... ouça bem, Brock... por que não construir uma réplica de nós mesmos feita de Matéria, do jeito que fomos um dia?
-Não me lembro disso – respondeu Brock. – Ninguém se lembra.
-Eu lembro – tornou Ames, com energia. – Tenho pensado nisso o tempo inteiro e estou começando a lembrar. Brock, deixe-me mostrar-lhe. Diga-me se estou certo ou não. Por favor.
-Não isto é uma bobagem. É... repugnante.
-Deixe-me tentar, Brock. Nós somos amigos. Temos pulsado juntos nossas energias desde o início, desde o momento em que nos tornamos o que somos agora. Brock, por favor!
-Está bem. Mas rápido.
Ames não tinha experimentado um tal tremor em suas linhas de força desde... desde quanto tempo? 

Se ele tentasse agora diante de Brock e tudo desse certo, ele teria coragem para manipular a Matéria diante de uma platéia de Seres-energia que esperavam há éons pelo surgimento de alguma novidade.
A Matéria era extremamente rarefeita naquele espaço entre as galáxias, mas Ames a reuniu pacientemente, recolhendo cada fragmento esparso entre tantos anos-luz cúbicos, escolhendo átomos, moldando aquilo até dar-lhe uma consistência quase de argila e compor uma forma ovóide, ligeiramente mais larga na parte de baixo.
-Não se lembra, Brock? –perguntou ele com suavidade. –Não era algo parecido com isto?
O vórtice de Brock estremeceu em fase.
-Não me faça lembrar! Eu não lembro!
-Isto era a cabeça. Chamavam assim... cabeça. Eu me lembro tão bem, tão bem... tenho vontade de dizê-lo. De dizê-lo em sons. –Ele esperou um pouco, depois falou: -Veja. Lembra-se disso?
Na parte superior do ovóide apareceu: CABEÇA.
-O que é? –perguntou Brock.
-A palavra que indica cabeça. Os símbolos que correspondem aos sons. Não me diga que não lembra, Brock.
-Havia algo... –disse Brock, hesitante. –Algo no meio... –Uma saliência vertical começou a se formar.
Ames exclamou:
-Isso, Nariz, é como se chamava! –Sobre a saliência apareceu NARIZ. –E isto dos dois lados são olhos. –Apareceram OLHO ESQUERDO – OLHO DIREITO.
Ames considerou com atenção o que tinha acabado de formar e suas linhas de força pulsaram pausadamente. Aquilo lhe agradava, de fato?
-Boca – disse ele, sendo percorrido por leves estremecimentos. –E queixo, e pomo-de-adão, e clavículas. É incrível... como essas palavras retornam. – As palavras apareceram sobre a forma.
Brock disse:
-Eu não penso nisso há centenas de bilhões de anos. Por que você tinha que me lembrar? Por quê?
Ames estava imerso em seus pensamentos.
-Existe algo mais... – disse. –Órgão para escutar. Alguma coisa que captava as ondas sonoras... Ouvidos! Mas, onde é que ficavam? Não consigo lembrar, não sei onde colocá-los...
Brock gritou de súbito:
-Deixe isso! Ouvidos, ou o quer que seja! Não lembre!
Ames perguntou, hesitante:
-Mas... o que há de mal em lembrar?
-Por que a superfície não era assim, áspera e fria, do jeito que está aí! Era macia e quente! Porque os olhos eram vivos e cheios de ternura, e os lábios da boca estavam trêmulos, e eram muito suaves... de encontro aos meus. – 

As linhas de força de Brock estavam vibrando e sacudindo-se de um lado para outro.
-Sinto muito! – disse Ames. –Sinto muito.
-Você me fez lembrar que um dia fui uma mulher e conheci o amor, que os olhos não servem apenas para ver e que eu não tenho mais olhos para fazer... o que eu queria fazer agora. –Num impulso repentino, ele agregou mais matéria aos olhos daquela forma tosca de cabeça e disse: -Eles podem fazer isto agora. – Mudou de direção e partiu.
Ames olhou aqui e lembrou que ele, um dia, tinha sido homem. A força do seu vórtice fendeu em duas metades aquela cabeça e ele partiu por entre as galáxias seguindo o rastro energético deixado por Brock, rumo à fatalidade sem fim das formas vivas.
Os olhos da cabeça despedaçada da Matéria ainda brilhavam com a umidade ali depositada por Brock em forma de lágrimas. A cabeça da Matéria fez o que os Seres-energia não podiam mais fazer e chorou por toda a humanidade e pela frágil beleza dos corpos que eles tinham descartado um dia, um trilhão de anos atrás.
Isaac Asimov

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