quinta-feira, março 31

Assim começa o livro...

Chamemos o nosso homem, o herói da história, de Amargo. Imaginamos um homem e, para ele, um nome. Ou, ao contrário: imaginamos o nome e, para ele, o homem. Embora isso tudo seja secundário, pois o nosso homem, o herói da história, chama-se, na realidade, Amargo.
O pai dele se chamava assim.
E o avô também.
Por conta disso, Amargo foi registrado como Amargo no cartório: essa é, portanto, a realidade, a que - como cabe à realidade - Amargo hoje em dia não atribui muita importância. Nos últimos tempos - num dos anos derradeiros do milênio que se encerra, digamos, no início da primavera de 1999, num final de manhã ensolarado -, a realidade se tornara, para Amargo, um conceito problemático, e, o que era mais grave, um estado problemático. Um estado em que - segundo os sentimentos mais íntimos de Amargo - a realidade era o que mais faltava. Se de algum modo o obrigavam a usar a palavra, Amargo sempre acrescentava: "a assim chamada realidade". Entretanto, isso era apenas uma frágil compensação, que não o satisfazia.
Amargo, nos últimos tempos, ficava muito à janela e olhava para a rua. A rua oferecia a visão comum e costumeira do cotidiano costumeiro das ruas de Budapeste. Junto da calçada imunda e manchada de lixo, óleo e sujeira de cachorros, havia carros, nos recessos de um metro entre as paredes leprosas, descascadas, das casas, os pedestres comuns e costumeiros perseguiam seus afazeres, e a expressão contrariada dos rostos refletia os pensamentos sombrios. Alguns deles, talvez na pressa, para se desviar da fileira de gansos rastejantes, desciam da calçada, e nisso o coro das buzinas rancorosas dos automóveis derrubava toda esperança irracional depositada no abandono da fila. Nos bancos da praça em frente que ainda conservavam o assento, sentavam-se à toa os desabrigados da redondeza, com os embrulhos, as sacolas, as garrafas plásticas. Acima de uma barba desgrenhada vibrava um gorro vermelho tricotado, e a borla pendente balançava alegre junto da pelugem repugnante. Um homem com o barrete puído de oficial de um exército inexistente vestia um sobretudo pesado de inverno, sem botões, desbotado, preso na cintura por um elegante cinto de seda, de flores coloridas, que lembrava o adereço de um robe de mulher.
Homenagem a Imre Kertész (1929-2016)

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