quarta-feira, junho 26

A primeira vaca a gente nunca esquece

Você pode não acreditar, mas ainda existem sujeitos que, morando numa cidade grande e civilizada, quase às vésperas do século 21, nunca viram uma vaca. Ao vivo, quero dizer.

Eu — parece inacreditável. Mas há espécimes ilustres dessa fauna e um deles é o ministro José Serra. Há alguns meses ele deixou escapar numa entrevista que, ao visitar uma fazenda atendendo a solicitações de seu ministério, foi apresentado pela primeira vez a uma vaca. Serra disso isso de passagem, sem dar nenhuma importância ao fato. Mas os repórteres caíram em cima do assunto: como pode um homem adulto tão preparado — um ministro de Estado! — nunca ter visto uma vaca?

Serra teve de explicar-se: era um homem urbano, sempre morara em megalópoles, passara a vida afogado em números, tinha pouca intimidade com as coisas do campo. Sua resposta foi sincera, mas não convenceu muito. Os leitores mais caridosos limitaram-se a fazer tsk, tsk, pesarosos por todos os anos que ele perdeu por ter custado tanto a ver uma vaca.

Bem, de minha parte, compreendi exatamente o drama de Serra. Porque, entre outras coisas, até três ou quatro anos atrás, eu também nunca tinha visto uma vaca.

Quando ousadamente afirmo “nunca ter visto uma vaca”, subentenda-se que me estou referindo àquelas vacas que se deixam contemplar a 1 ou 2 metros de distância, que fazem um simpático “Mu!” à nossa aproximação e talvez até nos concedam um daqueles olhares longos e lânguidos, que os mais experientes garantem ser típicos das vacas. Vaquinhas de beira de estrada, que se vê em rebanhos quando passamos por eles de carro a 100 quilômetros por hora, evidentemente não contam — mesmo porque quem garante que se trata de vacas? (E se forem bois?) Vacas de cinema, televisão, histórias em quadrinho e presépio também não contam. O que conta é a vaca autêntica, leiteira e lindamente acessível no seu curralzinho.

Mesmo para quem, como eu, nasceu em Minas Gerais, é perfeitamente possível nunca ter visto uma vaca. As vacas, por algum motivo, preferem habitar as fazendas e não me recordo de ter ido a nenhuma na infância.

Nos anos 50, os grandes fazendeiros mineiros eram todos do antigo PSD, um partido político com forte vocação rural. Mas eu era fã de Carlos Lacerda e torcia pela UDN, o partido favorito da classe média urbana. Não era inimigo dos fazendeiros do PSD, mas também não queria saber de intimidades. Com isso, tive o que pode se chamar de uma infância atípica: em vez de passar as férias na fazenda, assistindo ao aleitamento das vacas ou às porcas dando crias, eu passava as férias no Rio, andando de bonde pra lá e pra cá ou indo ver o Flamengo no Maracanã.

Adolescente e já de vez no Rio, aí é que perdi por completo a chance de ver uma vaca. E assim se passaram os anos.

Até que o inesperado fez um surpresa. Em fins de 1992 ou 1993, o luxuoso Cesar Park, em Ipanema, hospedou uma vaca holandesa premiada, de passagem pelo Rio. Os jornais deram com grande destaque. A vaca grã-fina foi exposta na calçada do hotel, em plena avenida Vieira Souto, dentro de um quadradinho construído para ela. Eu passava casualmente por ali com uma amiga quando a vi. Cheguei mais perto para espiar. Ela tinha ar esnobe, mas, pelo jeito gracioso e femininamente vacum, parecia mesmo uma vaca. Ainda perguntei à minha amiga: “Tem certeza de que não é um boi?”.

Ela me garantiu: “É uma vaca. Conheço vacas. Boto a mão no fogo”.

E assim, depois dessa informação — literalmente — de cocheira, considerei perdida a minha inocência em matéria de vacas. Eu já podia me gabar de ter visto uma, ainda que grã-fina, esnobe e na Vieira Souto. Mas não há vacas perfeitas.

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