sábado, junho 22

Vide televisão

Paisagem diária, repetitiva: deve haver umas quinze pessoas espalhadas no footing, entre os dois cinemas. Footing: passeio, passear, andar. Ninguém anda: nothing. Devia propor a modificação. Passa muita gente de carro. Surgem e desaparecem. Não consigo chegar à conclusão a respeito do desaparecimento deste povo. Por que se enfiaram em suas casas? Apenas a televisão? Ela pode ter sido chamariz justificativo. O argumento final. A descoberta. Quando visito meus parentes, fico deslumbrado com o ritual celebrado religiosamente na sala principal. A deusa quadrada emitindo brilho azulado e as pessoas sentadas. Silenciosamente, diante dela. Absorvendo. Nenhuma deusa dominou tanto os homens quanto esta. Por ela, os homens abandonaram tudo, se entregaram. No entanto, às vezes, pergunto: ela é que atraiu, ou os homens é que fugiram? Da rua, da calçada, do ar livre, do céu aberto, do cheiro de madressilva. Eu me lembro da minha rua, nas noites de verão, como uma grande assembleia de cadeiras na calçada. Diante das portas as cadeiras se reuniam em roda e alcançavam o meio da rua. Podia-se medir o relacionamento de uma pessoa pelo grupo que se formava em torno dela, depois do jantar. Recolheram pouco a pouco as cadeiras, e sobraram apenas alguns renitentes solitários, isolados, que não têm com quem conversar. Serão atropelados por um carro, qualquer noite.Tenho horror que me julguem o sacerdote de um culto nostálgico. O que pretendo dizer é que existiam no mundo situações muito humanas. Contato, reunião, troca de opiniões, conversa, enriquecimento mútuo, alegria no convívio. O povo se isolou voluntariamente ou inconscientemente? De repente, a rua passou a meter medo. Ou foi o poder de atração (sedução) da deusa azulada que modificou tudo?
Ignácio de Loyola Brandão, "Dentes ao sol"

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