quarta-feira, junho 19

Aquele domingo

Parece impossível que ninguém tenha fixado a data. Seria um domingo. Nunca íamos à praia nos outros dias da semana. Eu já usava biquíni, apesar da barriga arredondada de criança e de nada haver ainda no meu peito para tapar. Aquelas duas peças com flores encarnadas e azuis eram a prova inequívoca de que eu já era crescida. Tinha mais orgulho nelas do que em qualquer outra coisa.

Naquele domingo tudo se terá passado como sempre. Terá havido a mesma agitação logo de manhã, a minha mãe, na cozinha, a preparar as sandes, a cortar fatias de bolo de ananás que embrulhava em guardanapos de pano com um nó, o meu pai, no quintal, a partir o gelo comprado na bomba de gasolina do Sr. Inácio, para encher a geleira azul e refrescar a Mission maçã da minha mãe, as cervejas Cucas que ele iria beber e as Crush de morango com que a minha irmã e eu pintávamos os lábios de carmim. Acabados os preparativos, a minha mãe terá estendido as toalhas de praia nos bancos do Mazda para que a napa preta, a escaldar, não nos queimasse. A minha irmã reclamava sempre de qualquer coisa e mantinha-se afastada de mim, entregue à zanga constante que a nossa diferença de idade exigia. Já na praia, o creme Nivea transformava-me num palhacito de nariz branco, o sol escaldava-me os ombros e tornava bamba a linha do horizonte, a lonjura de areia pouco me atrasava a corrida para o mar e a minha mãe dizia, Parece que esta miúda nasceu com guelras, só está bem dentro da água. 

Quando alguém que amamos nos morre, não esquecemos essa data. As outras datas, aquelas em que eles sobrevivem, aquelas em que nós próprios sobrevivemos, perdem-se facilmente. Mesmo que a morte chegue tão perto como naquele domingo. É natural que assim seja: sobrevivemos em cada dia; em cada dia escapamos à morte, sem darmos conta disso; ser mortal pode querer dizer várias coisas, mas uma delas é a certeza de, sem darmos conta disso, cruzarmo-nos a cada instante com a possibilidade de morrermos. Até que o tempo, ou outra coisa qualquer, nos estraga irremediavelmente o corpo ou um acidente fatal se acerta no espaço e no tempo connosco. Quatro vezes na minha vida, escapei por um triz a esse acerto. A primeira vez foi nesse domingo e o tropa que me salvou recebeu uma medalha pelo feito. Eu tinha, então, oito anos. Na vez seguinte tinha onze, depois quinze e depois vinte e três. A partir daí, a morte pareceu desinteressar-se de mim, como se o seu único propósito fosse levar o meu corpo jovem.
Zbigniew Pronaszko
Os meus pais acabavam de almoçar com os meus tios, no restaurante da praia. Os meus primos e a minha irmã jogavam às cartas no enorme areal, mais abaixo, protegidos pelos chapéus de sol. Este desdobramento familiar permitiu-me desrespeitar a proibição de entrar na água durante as duas horas da sagrada digestão. Disse aos meus pais que estava com a minha irmã, à minha irmã que estava com os meus pais, e avancei confiante para o mar. Sendo a mais nova da família, não tinha com quem me entreter e tornava-se um suplício estar mais do que cinco minutos fora de água. Ainda que não soubesse nadar.

Não havia ninguém por perto. Só eu e as ondas. Eu e o susto bom dos tombos que dava, batia no fundo, enrolada por uma onda, e logo o meu corpo se guindava à superfície, para ser levado pela onda seguinte para terra, corria de volta ao mar, atirava-me à espuma que me salgava a boca e fazia arder os olhos, o meu corpo leve, tão leve, dentro do biquíni de flores encarnadas e azuis, um corpo-boia que vinha sempre à tona. Até que um remoinho me puxou para baixo e me levou para longe. Perdido o pé, nunca mais o ganhei. Esbracejei, esperneei, mas os movimentos empurravam-me, agora, para o fundo, repentinamente transformada numa âncora estranha presa a nada. Ou a quase nada. Precisamos de tempo para nos prendermos às coisas e à própria vida e naquele domingo eu ainda tinha vivido tão pouco. Não sabia bem o que era morrer, mas percebi que ia morrer. Morrer era o maior castigo que nos podiam dar e aquela minha aflição significava que, ao desobedecer aos meus pais, incorrera nele. Morrer era também uma coisa perigosa, talvez a mais perigosa que existia. Era, pelo menos, não voltar. Meses antes, a Isabelinha, minha colega de turma, não voltara das férias de Natal. Morreu num acidente de carro ao regressar de Nova Lisboa, disse-nos a professora. A carteira da Isabelinha, solenemente vazia para sempre, explicara-me melhor a morte do que as advertências dos meus pais, as conversas dos miúdos mais velhos, o velório da avó dos meus primos, melhor mesmo do que os ensinamentos da catequese acerca do paraíso, do inferno e do purgatório. Naquele domingo eu não ia voltar, não tinha como voltar. Ninguém ainda tinha dado sequer pela minha falta. Aprendi, assim, o outro lado da morte, o que é morrer para quem morre. Apesar de estar cada vez mais longe, conseguia distinguir com inexplicável nitidez a minha irmã e os meus primos debaixo dos chapéus de sol e, ainda mais além, os meus pais e os meus tios, no restaurante da praia. Assistia à minha vida sem mim. Às vezes, as reviravoltas que continuava a dar apontavam-me o lado oposto, uma tranquila extensão azul brilhante, a perder de vista, para onde o sol se começava a encaminhar.

Ao entrar-me pela boca e pelo nariz, a água escangalhava-me a respiração, mas não tardei a sentir-me pertença dela, como dois líquidos que se misturam. Tive pena de nunca mais estar com os meus pais e irmã, de nunca mais subir às árvores, jogar Monopólio, comer garibaldis na pastelaria Riviera, mas com tão poucos anos vividos de que ter saudades e tão poucos outros, imaginados, à minha espera, eu era quase só o presente, não custava deixar-me ir.

Antes de ter caído no breu de que ressuscitei na areia a vomitar golfadas de água salgada, tive medo do tropa que me salvou. Assustei-me ao perceber que qualquer coisa nadava veloz na minha direção. Talvez o meu corpo esteja menos preparado para o desconhecido do que para a morte. Talvez a morte não seja estranha ao meu corpo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário