quarta-feira, junho 12

Um homenzinho na ventania (fim)

A mão da mendiga trouxe de um lugar oculto nas dobras da saia encardida um pão pequeno, um pão bonito e puro. "Qué?" Tá quente ainda, bobo. Comprei agorinha mesmo." O gesto de oferta ficou paralisado. "Pega; tou com fome nada." O homenzinho resmungou conspicuamente: "Estou morrendo é de sede". "Água, como é que vou dá água?" E a mendiga se foi, comendo o pão. Antes de desaparecer na esquina, gritou: "Daqui a pouquinho o vento sossega, cê bebe água".

Kafu
Tinha febre o homenzinho. Durante algum tempo não aconteceu nada, senão o vento e as coisas do vento. Entre gravetos, galhos, folhas, latas, papéis, nuvens de pó, passou um tanque de guerra de brinquedo, reluzente na sua pintura, lançando fogo por um canhão de duas bocas. No apartamento térreo de defronte, amassado à vidraça, um rosto. A lente revelou uma garota deslumbrada com o parto da ventania. Desaparecido o brinquedo, a criança descobriu com alegria o homenzinho, acenando-lhe a rir. Muito pequena, era inútil tentar fazê-la compreender que ele precisava de ajuda. Se o vento despregasse o homenzinho da árvore e o carregasse para o mar, ela bateria palmas. Talvez. Quem sabe de fato o que se transmite da retina ao espírito de uma criança? Sabe-se que, de repente, agarrada por mãos invisíveis, a garota saiu voando de camisola vermelha, voando para trás como um beija-flor. Devia esperá-la sobre a mesa um imenso copo de leite morno. Talvez.

O homenzinho ficou só. Nas torres verdes dos aeroportos os homens mediam o vigor e o gênio do vento. Possível que entrasse em declínio dentro de um quarto de hora.

Um caminhão de feira, ao fazer a curva, foi agredido frontalmente pela ventania. Dois caixotes de laranjas tombaram. O motorista freou o carro, começou a recolher as frutas. Recuperadas quase todas, preferiu voltar ao caminhão, pois outros caixotes estavam ameaçados; ajeitou melhor a carga e partiu, sem lobrigar o homenzinho. Este rastejou até o meio-fio, apanhou uma laranja, descascou-a com os dedos trêmulos, bebeu-lhe o caldo, ávido. A sensação de alívio na garganta o comoveu; aqui, compadecido de si mesmo, um homenzinho chora. E o homenzinho chorou.

A comoção agravou o mal generalizado que o dizimava por todas as sensações que somam as parcelas de um serzinho humano. Taquicardia e falta de ar levavam-no a ombrear-se com a morte. O infarto. Ou enfarte. Não que agora se importasse de morrer, queria morrer, mas sobre uma cama de lençóis limpos, assistido pela mulher, o filho e um médico. Consolo para corpo e alma; morte sem dor demais.

Tirou do bolso a carteira, olhou, como se fosse despedida, o filho, a mulher, ele, um homenzinho de roupa nova, sorrindo, fazendo quinze anos de casado, amando a brisa que refresca o trópico. A esta hora, o filho talvez o procurasse pelos botequins da Glória. A mulher em casa, distúrbios neurovegetativos, bordando a interminável toalha. Sou um crápula, descobriu afinal o homenzinho, que cultivava o jardim das palavras esdrúxulas. Logo ontem, quando fazia quarenta anos! Réprobo!

Guardou os retratos, pois o vento desbaratava as folhas mais novas da amendoeira. Olhou para cima, sentiu um golpe contundente no flanco esquerdo: dentro da gaiola despencada, ainda vivo, um sofrê. O homenzinho abriu a portinhola, tomou o corpo quente do passarinho na palma da mão. Do outro lado da rua, uma laranja. Segurando a ave na mão esquerda, começou a arrastar-se até lá, de novo excitado, murmurando: "Você não vai morrer, passarinho…".

Foi a mais dolorosa jornada. A fim de evitar os golpes bruscos sobre a mão esquerda, erguia-se nos joelhos, e de joelhos caminhava alguns metros, chiando de asma, gemendo de dor, chorando sobre a grande miséria que está perto de tudo: exausto, tombava de bruços, molhava o passarinho em lágrimas, até que lhe voltassem os restos de força. Atingida a laranja, o poder do vento estava contado. Guardou a fruta no bolso e empreendeu a viagem de regresso, a roupa dilacerada, mãos e joelhos sangrando, lágrimas de ódio, de compaixão etílica, lágrimas turvas, grossas. Na metade da rua, perdeu os sentidos, estendendo-se sobre o asfalto como um crucificado. As mãos se abriram, o passarinho rolou, piando, até parar de encontro ao rosto do homenzinho. Ou homem. Um monte de lixo, vindo de uma lata revirada, envolveu o seu corpo, na sagração da primavera de Copacabana. Voltando a si, abriu os olhos míopes, sem entender. Quando entendeu, virou-se devagar para o céu cor de ratazana e falou: "Chega, chega!".

Erguendo-se com vigor sobre os joelhos, terrível como um rei que perdesse as pernas na batalha, e ainda assim avançasse, chegou à amendoeira. Colocou o sofrê no bolso, descascou a laranja, pegou o passarinho, abriu-lhe o bico, por onde deitou algumas gotas de suco. Mas estava morto o sofrê. Morto, sujo de terra e sangue, consumado. No círculo de terra em torno da árvore foi cavada com as unhas uma cova.

O vento sossegava. O homenzinho abriu a boca e dormiu, chiando na infelicidade do acesso asmático.

Duas horas depois, o sol brilhava sobre o Rio. Acordou ardendo em sede. Pessoas passavam rindo, lojas abertas, tráfego estridente, tudo voltara à normalidade. Levantou-se doído, cambaleante, amargo, olhou através da lente, e começou a caminhar dramaticamente até a Glória.

Quando a mulher lhe perguntou, chorando, o que tinha acontecido, o homenzinho respondeu: "Nada".
Paulo Mendes Campos

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