quinta-feira, junho 27

Ler um romance

Um romance é uma segunda vida. Como os sonhos de que fala o poeta francês Gérard de Nerval, os romances revelam cores e complexidades de nossa vida e são cheios de pessoas, rostos e objetos que julgamos reconhecer. Assim como no sonho, quando lemos um romance, às vezes ficamos tão impressionados com a natureza extraordinária das coisas que nele encontramos que esquecemos onde estamos e nos vemos no meio dos acontecimentos e das pessoas imaginárias que contemplamos. Em tais ocasiões, achamos o mundo fictício que descobrimos e apreciamos mais real que o mundo real. O fato de essa segunda vida nos parecer mais real que a realidade muitas vezes indica que substituímos a realidade pelo romance. Ou no mínimo o confundimos com a vida real. Mas nunca lamentamos essa ilusão, essa ingenuidade. Ao contrário, assim como em alguns sonhos, queremos que o romance que estamos lendo prossiga e esperamos que essa segunda vida continue evocando em nós uma sensação consistente de realidade e autenticidade. Apesar do que sabemos sobre a ficção, ficamos irritados e aborrecidos se um romance deixa de sustentar a ilusão de que é, na verdade, a vida real.

Sonhamos supondo que o sonho é real; essa é a definição de sonho. Do mesmo modo, lemos um romance supondo que ele é real – mas no fundo sabemos muito bem que não é assim. Esse paradoxo se deve à natureza do romance. Comecemos por enfatizar que a arte do romance conta com nossa capacidade de acreditar ao mesmo tempo em estados contraditórios.

Marc Chalme
Leio romances há quarenta anos. Sei que podemos adotar muitas posturas em relação ao romance, que existem muitas maneiras de engajar alma e mente nele, tratando-o com leviandade ou seriamente. Da mesma forma, aprendi pela experiência que há muitos modos de ler um romance. Às vezes, lemos logicamente; às vezes, com os olhos; às vezes, com a imaginação; às vezes, com uma pequena parte do cérebro; às vezes, como queremos; às vezes, como o livro quer; e, às vezes, com todas as fibras de nosso ser. Houve uma época, em minha juventude, na qual me dediquei por completo aos romances, lendo-os com atenção – até com êxtase. Naquele tempo, dos 18 aos 30 anos (1970 a 1982), eu queria descrever o que me passava pela cabeça e pela alma da mesma forma como um pintor retrata com precisão e clareza uma paisagem vívida, complexa, animada, cheia de montanhas, planícies, rochedos, bosques e rios.

O que ocorre em nossa cabeça, e em nossa alma, quando lemos um romance? Em que essas sensações interiores diferem do que sentimos quando vemos um filme, contemplamos um quadro ou escutamos um poema, mesmo um poema épico? De quando em quando, um romance pode proporcionar os mesmos prazeres que uma biografia, um filme, um poema, um quadro ou um conto de fadas. No entanto, o efeito singular e verdadeiro dessa arte é fundamentalmente diferente do de outros gêneros literários, do filme e do quadro. E talvez eu possa começar a mostrar essa diferença falando sobre as coisas que eu fazia e as complexas imagens que surgiam dentro de mim quando eu lia romances apaixonadamente em minha juventude.

Assim como o visitante do museu que, antes de mais nada, quer que o quadro que está contemplando entretenha sua visão, eu preferia ação, conflito e abundância na paisagem. Gostava da sensação de estar ao mesmo tempo observando secretamente a vida particular de um indivíduo e explorando os cantos escuros do panorama. Mas não quero lhes dar a impressão de que o quadro que eu tinha dentro de mim era sempre turbulento. Quando eu lia romances em minha juventude, às vezes uma paisagem ampla, profunda e pacata surgia dentro de mim. E, às vezes, as luzes se apagavam, o preto e o branco se intensificavam e depois se separavam, e as sombras se moviam. Às vezes, eu me encantava com a sensação de que o mundo inteiro era feito de uma luz diferente. E, às vezes, a penumbra entrava em cena e cobria tudo, o universo inteiro se tornava uma emoção única e um estilo único, e eu gostava disso e achava que estava lendo o livro por causa dessa atmosfera específica.

À medida que, lentamente, eu era atraído para o mundo existente dentro do romance, eu percebia que as sombras das ações que tinha realizado antes de abrir o livro, sentado em minha casa, em Beşiktaş, Istambul – o copo de água que eu havia tomado, a conversa que tivera com minha mãe, os pensamentos que me passaram pela cabeça, os pequenos ressentimentos que eu alimentara –, lentamente se esvaeciam.

Sentia que a poltrona laranja na qual estava sentado, o cinzeiro malcheiroso a meu lado, a sala carpetada, as crianças jogando futebol na rua e os apitos da balsa distante pouco a pouco se afastavam de minha mente; e que um mundo novo se revelava, palavra por palavra, frase por frase, diante de mim. Enquanto eu lia página por página, esse mundo novo se cristalizava e se tornava mais claro, assim como aqueles desenhos secretos que se mostram pouco a pouco, quando derramamos uma solução reagente sobre eles; e linhas, sombras, eventos e protagonistas vinham à luz. Nesses momentos iniciais, tudo que retardava minha entrada no mundo do romance, tudo que me impedia de lembrar e visualizar personagens, eventos e objetos me afligia e me irritava.

Um parente cujo grau de parentesco com o protagonista real eu esquecera, a localização incerta de uma gaveta contendo uma arma ou uma conversa que eu percebia que tinha duplo sentido, mas cujo segundo sentido eu não conseguia decifrar – esse tipo de coisa me incomodava horrivelmente. E enquanto meus olhos avidamente percorriam as palavras, eu queria, com um misto de impaciência e prazer, que tudo se encaixasse sem demora. Nesses momentos, todas as portas de minha percepção se abriam o máximo possível, como os sentidos de um animal tímido libertado num ambiente completamente estranho, e minha mente começava a funcionar muito mais depressa, quase em estado de pânico. Enquanto concentrava a atenção nos detalhes do romance que tinha nas mãos, de modo a me afinar com o mundo no qual estava entrando, eu lutava para ver as palavras em minha imaginação e visualizar tudo que o livro descrevia.

Pouco depois, o esforço intenso e cansativo produzia resultados, e a vasta paisagem que eu queria ver se descortinava diante de mim, como um continente imenso que aparece com toda a nitidez quando a neblina se dispersa. Então eu podia ver as coisas contadas no romance como alguém que olha pela janela, facilmente, confortavelmente, e observa o panorama. Ler a descrição de Pierre observando a batalha de Borodinó do alto de um monte, em Guerra e Paz, de Tolstói, é para mim um modelo de como ler um romance. Muitos detalhes que percebemos que o romance está urdindo delicadamente e preparando para nós e que julgamos necessário ter disponíveis na memória, enquanto lemos, aparecem nessa cena como num quadro. O leitor tem a impressão de estar não entre as palavras de um romance, mas de pé diante de uma paisagem pintada. Aqui, são decisivas a atenção do escritor para com o detalhe visual e a capacidade do leitor de, através da visualização, transformar as palavras numa grande paisagem pintada. Também lemos romances que não transcorrem em vastas paisagens, em campos de batalha ou na natureza, mas em salas, em sufocantes atmosferas interiores – A Metamorfose, de Kafka, é um bom exemplo. E lemos essas histórias como se observássemos uma paisagem e, transformando-a em pintura com os olhos da mente, acostumamo-nos com a atmosfera da cena, deixando-nos influenciar por ela e, na verdade, procurando-a constantemente.

Deixem-me dar mais um exemplo, novamente de Tolstói, que lida com o ato de olhar por uma janela e mostra como se pode entrar na paisagem de um romance durante a leitura. A cena é do maior romance de todos os tempos: Anna Kariênina. Anna conheceu Vronski em Moscou. Voltando para casa à noite, de trem, ela está contente, porque em São Petersburgo verá o filho e o marido na manhã seguinte:

[Anna] retirou de dentro de sua bolsinha uma espátula para separar as páginas de um romance inglês. A princípio, não conseguiu ler. O vozerio e o vaivém das pessoas a incomodavam, no início; em seguida, quando o trem se pôs em movimento, era impossível não ouvir os barulhos; depois, a neve, que batia na janela da esquerda e grudava no vidro, o vulto do condutor agasalhado que passava por ela com um dos lados do corpo coberto de neve e as conversas sobre a terrível nevasca lá fora distraíam sua atenção. E logo tudo se repetia; os mesmos solavancos que sacudiam, a mesma neve na janela, as mesmas mudanças abruptas do vapor quente para o frio, e de novo para o calor, o mesmo lampejo dos mesmos rostos na penumbra e as mesmas vozes, e Anna começou a ler e a entender o que lia. Ánuchka já cochilava, segurando uma bolsinha vermelha sobre os joelhos com as mãos largas e de luvas, uma delas, rasgada. Anna Arcádievna lia e compreendia, mas não tinha gosto em ler, ou seja, em seguir o reflexo da vida de outras pessoas. Sentia uma desmedida vontade de viver por si mesma. Se lia como a heroína do romance cuidava de um doente, tinha vontade de entrar, com passos inaudíveis, no quarto do doente; se lia como um membro do parlamento discursava, sentia vontade de fazer ela mesma o discurso; se lia como Lady Mary saía a cavalo atrás da matilha numa caçada, como provocava a cunhada e surpreendia a todos com a sua coragem, Anna sentia vontade de fazer tudo isso ela mesma. Mas nada havia para ela fazer e Anna, revirando a espátula lisa em suas mãos pequeninas, redobrava o esforço para ler.

Anna não consegue ler, porque não consegue parar de pensar em Vronski, porque quer viver. Se conseguisse concentrar-se no romance, poderia facilmente imaginar Lady Mary montando seu cavalo e seguindo seus cães. Visualizaria a cena, como se estivesse olhando pela janela, e se sentiria entrando pouco a pouco nessa cena que observa a partir de fora.

A maioria dos romancistas intui que ler as páginas iniciais de um romance é semelhante a entrar numa paisagem pintada. Deixem-me lembrar como Stendhal começa O Vermelho e o Negro. Primeiro, vemos, de longe, a cidade de Verrières, a colina em que está situada, as casas brancas com seus pontudos telhados vermelhos, os tufos de viçosos castanheiros e as ruínas das fortificações da cidade. O rio Doubs corre mais abaixo. Depois, tomamos conhecimento das serrarias e da fábrica que produz toiles peintes, coloridos tecidos estampados.

Apenas uma página adiante, já encontramos o prefeito, uma das personagens principais, e identificamos sua maneira de pensar. O prazer real de ler um romance surge com a capacidade de ver o mundo não a partir de fora, mas pelos olhos dos protagonistas que habitam esse mundo. Quando lemos um romance, oscilamos entre a visão demorada e momentos fugidios, pensamentos gerais e eventos específicos, numa velocidade que nenhum outro gênero literário pode oferecer. Olhando de longe para uma paisagem pintada, de repente nos encontramos entre os pensamentos do indivíduo que está na paisagem e entre as nuances de seu estado de espírito. Algo semelhante ocorre quando vemos numa paisagem chinesa uma pequena figura humana pintada entre penhascos, rios e árvores frondosas: concentramo-nos nessa figura e tentamos imaginar através de seus olhos a paisagem que a cerca. (As pinturas chinesas são concebidas para ser lidas dessa maneira.) Então nos damos conta de que a paisagem foi composta para refletir os pensamentos, emoções e percepções da figura que nela se encontra.

Da mesma forma, quando percebemos que a paisagem dentro do romance é uma extensão, uma parte do estado mental dos protagonistas, constatamos que nos identificamos com esses protagonistas numa transição inconsútil. Ler um romance significa que, enquanto confiamos à memória o contexto global, acompanhamos, um por um, os pensamentos e atos dos protagonistas e lhes atribuímos sentido dentro da paisagem geral. Agora estamos no interior da paisagem que pouco antes contemplávamos de fora: além de ver as montanhas mentalmente, sentimos o frescor do rio e o cheiro da floresta, falamos com os protagonistas e nos aprofundamos no universo do romance. Sua linguagem nos ajuda a reunir esses elementos distantes e distintos e a perceber os rostos e os pensamentos dos protagonistas como parte de uma visão única.

Nossa mente trabalha muito quando estamos imersos num romance, mas não como a mente de Anna no trem barulhento e coberto de neve que segue para São Petersburgo. Continuamente oscilamos entre a paisagem, as árvores, os protagonistas, os pensamentos dos protagonistas e os objetos que eles tocam – passamos dos objetos às lembranças que evocam, aos outros protagonistas e enfim aos pensamentos gerais. Nossa mente e nossa percepção trabalham diligentemente, com grande rapidez e concentração, realizando numerosas operações ao mesmo tempo, porém muitos leitores nem sequer percebem que estão realizando essas operações. É exatamente igual ao que acontece com quem está dirigindo um carro: sem se dar conta, o motorista aperta botões, pisa em pedais, gira o volante com cuidado e em conformidade com muitas regras, lê e interpreta sinais de trânsito e presta atenção ao tráfego.

A analogia com o motorista é válida não só para o leitor, mas também para o romancista. Alguns romancistas não se dão conta das técnicas que utilizam; escrevem espontaneamente, como se executassem um ato perfeitamente natural, alheios às operações e aos cálculos que seus cérebros efetuam e ao fato de que estão usando as marchas, os freios e os botões que a arte do romance lhes fornece. Vamos empregar a palavra “ingênuo” para descrever esse tipo de sensibilidade, esse tipo de romancista e esse tipo de leitor de romance – que não estão nem um pouco preocupados com os aspectos artificiais da escrita e da leitura de um romance. E vamos utilizar o termo “reflexivo” para descrever a sensibilidade oposta: em outras palavras, os leitores e escritores que se fascinam com a artificialidade do texto e seu malogro em alcançar a realidade e que dão muita atenção aos métodos empregados na escrita de um romance e à maneira como nossa mente funciona quando lemos. O romancista exerce a arte de ser ao mesmo tempo ingênuo e reflexivo.

Ou ingênuo e “sentimental”. Friedrich Schiller foi o primeiro a propor essa distinção, em seu famoso ensaio “Über naive und sentimentalische Dichtung” (Sobre poesia ingênua e sentimental; 1795-6). A palavra sentimentalisch, usada por Schiller para descrever o poeta moderno, pensativo e angustiado, que perdeu seu caráter e sua ingenuidade infantis, tem um sentido um tanto diferente da palavra “sentimental”. Mas não vale a pena nos determos nessa palavra, que, de qualquer modo, Schiller tomou emprestada do inglês, inspirado por Uma Viagem Sentimental, de Laurence Sterne. (Como exemplos de gênios ingênuos e infantis, Schiller respeitosamente cita Sterne, além de Dante, Shakespeare, Cervantes, Goethe e até mesmo Dürer, entre outros.) Basta-nos notar que Schiller utiliza a palavra sentimentalisch para descrever o estado de espírito que se afastou da simplicidade e da força da natureza e se deixou arrebatar pelas próprias emoções e pensamentos. Aqui, meu objetivo é chegar a um entendimento mais profundo do ensaio de Schiller, que amo desde a juventude, assim como aclarar meus pensamentos acerca da arte do romance por meio desse ensaio (como sempre fiz) e expressá-los acuradamente (como estou me esforçando para fazer).

Nessa obra famosa, que Thomas Mann descreveu como “o mais belo ensaio da língua alemã”, Schiller divide os poetas em dois grupos: os ingênuos e os sentimentais. Os ingênuos estão irmanados com a natureza; na verdade, são como a natureza – calma, cruel e sábia. Escrevem poesia espontaneamente, quase sem pensar, não se dando ao trabalho de considerar as consequências intelectuais ou éticas de suas palavras e não se importando com o que os outros possam dizer. Para eles – ao contrário do que ocorre com escritores contemporâneos –, a poesia é como uma impressão que a natureza produz neles organicamente e que nunca mais os deixa. A poesia ocorre naturalmente ao poeta ingênuo, brotando do universo natural do qual ele faz parte.

A crença de que um poema não é algo pensado e deliberadamente elaborado pelo poeta, composto em determinada métrica e moldado através de revisão constante e autocrítica, mas algo que deve ser escrito irrefletidamente e que até pode ser ditado pela natureza, por Deus ou por outro poder – essa noção romântica foi advogada por Coleridge, devoto seguidor dos românticos alemães, e claramente expressa em 1816 no prefácio a seu poema “Kubla Khan”.

No ensaio de Schiller, que suscita em mim grande admiração toda vez que o leio, há um atributo entre as características definidoras do poeta ingênuo que desejo enfatizar de modo especial: o poeta ingênuo não tem dúvida de que seus enunciados, suas palavras, seus versos vão retratar a paisagem geral, vão representá-la, vão descrever e revelar, adequada e minuciosamente, o sentido do mundo – pois esse sentido não está distante nem escondido dele.

Em contraposição, de acordo com Schiller, o poeta “sentimental” (emocional, reflexivo) se inquieta basicamente por uma razão: ele não sabe ao certo se suas palavras irão abarcar a realidade, se irão alcançá-la, se seus enunciados irão transmitir o sentido almejado por ele. Assim, está extremamente consciente do poema que escreve, dos métodos e técnicas que utiliza e do artifício envolvido no seu empreendimento. O poeta ingênuo não vê muita diferença entre sua percepção do mundo e o mundo em si. Já o poeta moderno, sentimental-reflexivo, questiona tudo que percebe, até mesmo os próprios sentidos. E, quando vaza suas percepções em verso, princípios educativos, éticos e intelectuais o ocupam.

O famoso e, a meu ver, divertido ensaio de Schiller é uma fonte atraente para quem quer refletir sobre a inter-relação de arte, literatura e vida. Eu o li repetidas vezes na juventude, pensando nos exemplos que apresenta, nos tipos de poetas que aborda e nas diferenças entre escrever espontaneamente e escrever deliberada e conscientemente, com a ajuda do intelecto. Ao ler esse ensaio, eu também pensava em mim como romancista, naturalmente, e em meus vários estados de espírito durante a elaboração de um romance. E lembrava o que havia sentido anos antes, quando pintava. Dos 7 aos 22 anos, pintei constantemente, sonhando tornar-me pintor algum dia, porém continuei sendo um artista ingênuo e acabei por abandonar a pintura, talvez depois que tomei consciência disso. Essa obra de Schiller, densa e provocativa, há de me acompanhar enquanto eu estiver refletindo sobre a arte do romance, lembrando-me de minha juventude, que prudentemente oscilava entre o “ingênuo” e o “sentimental”.

Depois de certo ponto, o ensaio de Schiller já não trata de poesia apenas, ou de arte e literatura em geral, mas se torna um texto filosófico sobre tipos humanos. Nesse ponto, quando o texto alcança seu auge dramático e filosófico, gosto de ler nas entrelinhas os pensamentos e opiniões pessoais. Quando diz que “há dois tipos diferentes de humanidade”, Schiller também quer dizer, segundo historiadores alemães da literatura: “Aqueles que são ingênuos como Goethe e aqueles que são sentimentais como eu!” Schiller invejava Goethe não só por seus dotes poéticos, como por sua serenidade, sua naturalidade, seu egoísmo, sua autoconfiança, seu espírito aristocrático; pela maneira como ele, sem esforço, chega a grandes e brilhantes pensamentos; por sua capacidade de ser ele mesmo; por sua simplicidade, sua modéstia e seu gênio; e por sua inconsciência de tudo isso, à maneira de uma criança. Ele próprio, Schiller, em contraste, era muito mais reflexivo e intelectual, mais complexo e atormentado em sua atividade literária, muito mais cônscio de seus métodos literários, cheio de perguntas e incertezas com relação a eles – e considerava tais atitudes e traços mais “modernos”.

Trinta anos atrás, lendo Poesia Ingênua e Sentimental, eu também – como Schiller furioso com Goethe – reclamava da natureza ingênua e infantil dos romancistas turcos da geração anterior. Eles escreviam com muita facilidade e nunca se preocupavam com problemas de estilo e técnica. E eu aplicava o termo “ingênuo” (cada vez mais num sentido negativo) não só a eles, mas a escritores de todo o mundo que viam o romance balzaquiano do século XIX como uma entidade natural e a aceitavam sem questionar. Agora, após uma aventura de 35 anos como romancista, eu gostaria de continuar com meus próprios exemplos, mesmo quando tento me convencer de que encontrei um equilíbrio entre o romancista ingênuo e o romancista sentimental que existem dentro de mim.

Ao discorrer sobre o mundo retratado no romance, usei a analogia com a paisagem. Acrescentei que alguns leitores não percebem o que ocorre em nossa mente quando lemos um romance, como os motoristas que não se dão conta das operações que executam ao dirigir o carro. O romancista ingênuo e o leitor ingênuo são como quem acredita sinceramente que entende o lugar e os indivíduos que vê da janela do carro, enquanto se desloca pela paisagem. E, como acredita no poder da paisagem que vê da janela do carro, esse tipo de gente pode começar a falar sobre as pessoas e a fazer pronunciamentos que suscitem inveja no romancista sentimental-reflexivo. Já o romancista sentimental-reflexivo dirá que a vista da janela do carro é limitada pela moldura e que de qualquer modo o vidro está sujo, e se recolherá a um silêncio beckettiano. Ou, como eu e muitos outros romancistas literários contemporâneos, descreverá a roda, os botões, a janela enlameada, as engrenagens como parte da cena, de modo que nunca esquecemos que o que vemos é restrito pelo ponto de vista do romance.

Antes que nos deixemos levar pela analogia e seduzir pelo ensaio de Schiller, vamos listar as ações mais importantes que ocorrem em nossa mente quando lemos um romance. Ler um romance sempre implica essas operações, mas só os romancistas de espírito “sentimental” conseguem reconhecê-las e chegar a um inventário detalhado. Essa lista vai lembrar-nos o que o romance realmente é – algo que sabemos, mas que bem podemos ter esquecido. São estas as operações que nossa mente executa quando lemos um romance:

1. Observamos a cena geral e seguimos a narrativa. No livro que escreveu sobre Dom Quixote, de Cervantes, o pensador e filósofo espanhol José Ortega y Gasset diz que lemos romances de aventura, novelas de cavalaria, romances baratos (histórias de detetive, de amor, de espionagem e por aí afora) para ver o que acontece na sequência; mas lemos o romance moderno (o que hoje chamamos de “romance literário”) por sua atmosfera. De acordo com Ortega y Gasset, o romance de atmosfera é algo mais valioso. É como uma “paisagem pintada” e contém bem pouca narrativa.

Mas lemos um romance – seja com muita narrativa e ação, seja sem narrativa nenhuma, como uma paisagem pintada – sempre da mesma forma fundamental. Nosso procedimento habitual consiste em acompanhar a narrativa e tentar descobrir o significado e a ideia principal sugeridos pelas coisas que encontramos. Ainda que um romance, assim como uma paisagem pintada, apresente, uma a uma, muitas folhas de árvore individuais, sem narrar um só acontecimento (o tipo de técnica usada, por exemplo, no nouveau roman francês de Alain Robbe-Grillet ou Michel Butor), começamos a meditar no que o narrador está tentando sugerir dessa maneira e no tipo de história que essas folhas acabarão formando. Nossa mente busca um motivo, uma ideia, um propósito, um centro secreto.

2. Transformamos palavras em imagens mentais. O romance conta uma história, mas não é só uma história. A história emerge, pouco a pouco, de muitos objetos, descrições, ruídos, conversações, fantasias, lembranças, informações, pensamentos, eventos, cenas, momentos. Ter prazer com um romance é desfrutar o ato de partir de palavras e transformar essas coisas em imagens mentais. Ao visualizar na imaginação o que as palavras nos dizem (o que elas querem nos dizer), nós, leitores, completamos a história. Com isso, impelimos nossa imaginação, procurando descobrir o que o livro diz ou o que o narrador quer dizer, o que ele pretende dizer, o que supomos que ele está dizendo – em outras palavras, tentando encontrar o centro do romance.

3. Outra parte de nossa mente se pergunta até que ponto a história que o escritor está nos contando é uma experiência real e até que ponto é imaginação. Fazemos essa pergunta sobretudo nos trechos do romance que nos suscitam surpresa, admiração, espanto. Ler um romance é perguntar-se o tempo todo, mesmo nos momentos em que nos perdemos no livro mais profundamente: até que ponto isto é fantasia e até que ponto é real? Há um paradoxo lógico entre, por um lado, a experiência de perder-se no romance e ingenuamente pensar que é real e, por outro lado, a própria curiosidade sentimental-reflexiva em relação à medida de fantasia que o relato contém. No entanto, o poder e a vitalidade inexauríveis da arte do romance provêm de sua lógica única e de sua confiança nesse tipo de conflito. Ler um romance significa compreender o mundo por uma lógica não cartesiana – ou seja, com a constante e inabalável capacidade de acreditar ao mesmo tempo em ideias contraditórias. Assim, uma terceira dimensão da realidade começa, pouco a pouco, a emergir dentro de nós: a dimensão do complexo mundo do romance. Seus elementos conflitam mutuamente, porém ao mesmo tempo são aceitos e descritos.

4. Ainda nos perguntamos: a realidade é assim? As coisas narradas, vistas e descritas no romance correspondem ao que sabemos por nossa própria experiência? Por exemplo, perguntamo-nos: na década de 1870, um passageiro do trem noturno de Moscou a São Petersburgo poderia facilmente encontrar conforto e sossego suficientes para ler um romance, ou o escritor está tentando nos dizer que Anna é uma autêntica bibliófila que gosta de ler mesmo entre distrações ruidosas? No âmago do ofício de romancista há um otimismo que acredita que o conhecimento que adquirimos com nossa experiência cotidiana pode se tornar um valioso conhecimento da realidade, se receber a forma adequada.

5. Sob a influência desse otimismo, avaliamos e desfrutamos a precisão das analogias, o poder da fantasia e da narrativa, a construção das frases, a secreta e cândida poesia e a musicalidade da prosa. Problemas e prazeres de estilo não estão no âmago do romance, mas estão bem perto dele. Contudo, esse tópico convidativo só pode ser abordado mediante milhares de exemplos.

6. Formulamos juízos morais acerca das escolhas e da conduta dos protagonistas; ao mesmo tempo, julgamos o escritor por seus juízos morais sobre suas personagens. O juízo moral é um inevitável terreno pantanoso no romance. Tenhamos em mente que a arte do romance produz seus melhores resultados não quando julga pessoas, mas quando as compreende, e não nos deixemos dominar pela parte judicativa de nossa mente. Quando lemos um romance, a moralidade deve ser parte da paisagem, não algo que emana de dentro de nós e se volta contra as personagens.

7. Enquanto nossa mente realiza todas essas operações ao mesmo tempo, congratulamo-nos pelo conhecimento, pela profundidade e pelo entendimento que conquistamos. Sobretudo nos romances de alta qualidade literária, a intensa relação que estabelecemos com o texto parece a nós, leitores, nosso sucesso particular. Pouco a pouco vemos surgir a doce ilusão de que o romance foi escrito unicamente para nós. A intimidade e a confiança que se estabelecem entre nós e o escritor nos ajudam a evadir-nos e a não nos preocuparmos muito com os trechos do livro que não conseguimos entender ou as coisas que desaprovamos ou consideramos inaceitáveis. Assim, em certa medida sempre nos tornamos cúmplices do romancista. Quando lemos um romance, uma parte de nossa mente está ocupada em esconder, admitir, moldar e construir atributos positivos que favorecem essa cumplicidade. Para acreditar na narrativa decidimos não acreditar no narrador tanto quanto ele quer que acreditemos – porque queremos continuar lendo a narrativa fielmente, apesar de discordar de algumas opiniões, propensões e obsessões do escritor.

8. Durante toda essa atividade mental, nossa memória trabalha muito e sem parar. Para encontrar sentido e prazer no universo que o escritor nos revela nós sentimos que temos de procurar o centro secreto do romance e, assim, tentamos engastar na memória cada detalhe do romance, como se procurássemos reter a aparência de cada uma das folhas de uma árvore. A menos que o escritor tenha simplificado e diluído seu mundo para ajudar o leitor desatento, lembrarmo-nos de tudo é difícil. Essa dificuldade também define os limites da forma novelística. O romance precisa ter uma extensão que nos permita lembrar todos os detalhes reunidos no processo da leitura, porque o significado de tudo que encontramos ao deslocarmo-nos pela paisagem está relacionado com tudo o mais com que cruzamos. Num romance bem construído, tudo está relacionado com tudo, e essa rede de relações forma a atmosfera do livro e, ao mesmo tempo, aponta para seu centro secreto.

9. Buscamos o centro secreto do romance com extrema atenção. Essa é a operação que a nossa mente executa com mais frequência quando lemos um romance, esteja ela ingenuamente inconsciente disso ou sentimentalmente reflexiva. O que distingue o romance de outras narrativas literárias é o fato de que ele tem um centro secreto. Ou, mais precisamente, o fato de que ele conta com nossa convicção de que existe um centro que devemos buscar enquanto lemos.

De que é feito o centro do romance? De tudo que faz o romance, poderíamos responder. Mas estamos convencidos de que esse centro está longe da superfície do romance, que seguimos palavra por palavra. Imaginamos que se situa no plano de fundo e é invisível, difícil de localizar, elusivo, quase dinâmico. Otimistas, achamos que os indicadores desse centro estão em toda parte e que o centro conecta todos os detalhes do romance, tudo que encontramos na superfície da vasta paisagem. Discutirei até que ponto esse centro é real, até que ponto é imaginário.

Porque sabemos – ou supomos – que o romance tem um centro, agimos, enquanto leitores, exatamente como o caçador que vê um indício em cada folha e cada galho quebrado e os examina com toda a atenção, à medida que avança pela paisagem. Vamos em frente, sentindo que cada nova palavra, objeto, personagem, protagonista, conversa, descrição, detalhe, todas as qualidades linguísticas e estilísticas do romance e as reviravoltas de sua narrativa sugerem e apontam para algo além do que é aparente. Essa convicção de que o romance tem um centro nos leva a crer que um detalhe aparentemente irrelevante pode ser significativo e que o sentido de tudo que está na superfície do romance pode ser muito diferente. O romance é uma narrativa aberta a sentimentos de culpa, paranoia e ansiedade. A sensação de profundidade que nos proporciona a leitura de um romance, a ilusão de que o livro nos imerge num universo tridimensional se devem à presença do centro – real ou imaginário.

O que basicamente separa o romance do poema épico, da novela medieval ou da tradicional narrativa de aventuras é a ideia de um centro. O romance apresenta personagens muito mais complexas que as da epopeia; focaliza gente comum e escava todos os aspectos da vida cotidiana. Mas deve essas qualidades e esses poderes à presença de um centro em algum lugar e ao fato de que o lemos com esse tipo de esperança. Quando nos revela detalhes mundanos da vida e nossas pequenas fantasias, hábitos cotidianos e objetos conhecidos, lemos com curiosidade – na verdade, com espanto –, porque sabemos que isso indica um significado mais profundo. Cada aspecto da paisagem geral, cada folha, cada flor é interessante e intrigante, porque esconde um significado oculto.

O romance pode se dirigir às pessoas da era moderna, na verdade a toda a humanidade, porque é uma ficção tridimensional. Pode falar de experiência pessoal, do conhecimento que adquirimos através dos sentidos e, ao mesmo tempo, pode oferecer um fragmento de conhecimento, uma intuição, uma pista sobre a coisa mais profunda – em outras palavras, sobre o centro, ou o que Tolstói chama de sentido da vida (ou como quer que o chamemos), esse local difícil de alcançar e que otimisticamente pensamos que existe. O sonho de alcançar o conhecimento mais profundo, mais precioso do mundo e da vida sem ter de enfrentar as dificuldades da filosofia ou as pressões sociais da religião – e de chegar lá com base em nossa própria experiência, usando nosso próprio intelecto – é um tipo de esperança muito igualitário, muito democrático.

Foi com grande intensidade e com essa esperança específica que li romances entre os 18 e os 30 anos. Cada romance que eu lia, sentado em minha sala em Istambul, proporcionava-me um universo tão rico em detalhes quanto qualquer enciclopédia ou museu, tão humano quanto minha própria existência e repleto de exigências, consolações e promessas que, em profundidade e extensão, só eram comparáveis às encontradas na filosofia e na religião. Eu lia romances como se estivesse sonhando, esquecendo tudo o mais, para adquirir conhecimento do mundo, para construir a mim mesmo e formar minha alma.

E. M. Forster diz, em Aspectos do Romance, que “o teste final de um romance será nosso afeto por ele”. Para mim, o valor de um romance está em seu poder de provocar uma busca por um centro que também podemos ingenuamente projetar no mundo. Para simplificar: a real medida desse valor deve ser a capacidade do romance de despertar a sensação de que a vida é, com efeito, exatamente assim. O romance deve se dirigir a nossas principais ideias sobre a vida e deve ser lido com a esperança de que fará isso.

Por causa de sua estrutura, adequada à busca e à descoberta de um significado oculto ou de um valor perdido, o gênero mais condizente com o espírito e a forma da arte novelística é o que os alemães chamam de Bildungsroman, ou “romance de formação”, que fala da moldagem, da educação e do amadurecimento de jovens protagonistas, à medida que se familiarizam com o mundo. Em minha juventude, eu me exercitava com a leitura desses livros (A Educação Sentimental, de Flaubert; A Montanha Mágica, de Mann). Pouco a pouco, comecei a ver o conhecimento fundamental que o centro do romance proporcionava – conhecimento do tipo de lugar que era o mundo e da natureza da vida – não só no centro, mas em toda parte do romance. Assim foi, talvez, porque cada frase de um bom romance suscita em nós um senso do conhecimento profundo e essencial do que significa existir neste mundo. Também aprendi que nossa trajetória por este mundo, a vida que levamos em cidades, ruas, casas, salas e na natureza consiste em nada mais que uma busca de um sentido secreto que pode ou não existir.

O romance pode suportar todo esse peso. Assim como leitores buscando o centro ao ler um romance, ou ingênuos e jovens protagonistas num Bildungsroman procurando o sentido da vida com curiosidade, sinceridade e fé, tentaremos avançar rumo ao centro da arte do romance. A vasta paisagem que percorremos nos levará ao escritor, à ideia de ficção e ficcionalidade, às personagens de um romance, à trama narrativa, ao problema do tempo, a objetos, ao ato de ver, a museus e a lugares que ainda não conseguimos prever – talvez como num romance real.
Orhan Pamuk

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