domingo, junho 16

As bibliotecas humanas

Perto de completar 90 anos, o meu pai decidiu que ia sendo tempo de escrever as suas memórias. Hoje, com 93, já publicou dois grossos volumes, e encetou um terceiro. Espanto-me com a forma detalhada como narra eventos acontecidos quando era ainda criança. Lembra-se, por exemplo, do primeiro livro que leu, quando tinha 7 ou 8 anos, e até do local onde o leu — em cima de um “enorme e centenário castanheiro”.

“Reviver”, o título que o meu pai deu à sua autobiografia, vale como um testemunho da vida em Portugal, Angola e Brasil, desde há quase um século. Para alguém como eu, incapaz de se recordar do que almoçou ontem, aquelas lembranças tão vivas parecem-me um prodígio. Se a minha memória fosse semelhante à dele talvez não me tivesse tornado escritor. Suspeito que comecei a produzir ficção, ou seja, a inventar enredos, ainda antes de saber ler e escrever, precisamente para preencher os vazios da memória. Incapaz de responder a perguntas simples — “o que comeste ontem?” — eu mentia com enorme entusiasmo. Nunca mais parei. Quem sabe toda a ficção literária nasceu da falta de memória.

Existem diversas bibliotecas ao redor do mundo que compreenderam a importância dos relatos autobiográficos, diários pessoais e outros textos de testemunho, textos íntimos, não publicados, e os recolhem para poderem depois ser consultados por qualquer pessoa. É material interessante para historiadores, jornalistas ou escritores, ao dar a conhecer a intimidade de vidas que a grande história tende a ignorar ou a desprezar.


Foi partilhando este espírito, mas num formato muito mais radical, que surgiu, na viragem do século, em Copenhague, o projeto das bibliotecas humanas — The Human Library. Neste projeto, que até já tem uma residência permanente, em Lismore, na Austrália, os “leitores” sentam-se diante do “livro humano” que escolheram e este conta-lhes a sua história.

Os “livros” são, regra geral, pessoas colocadas à margem pela sociedade, desde refugiado a sem-teto, passando por antigos soldados e vítimas de abusos sexuais.

A primeira edição do projeto aconteceu durante o festival de música de Roskilde, um dos mais importantes do norte da Europa, e contou com a participação de mais de mil “leitores”. O sucesso do evento levou à sua multiplicação. Hoje tem parceiros em 70 países.

As bibliotecas humanas ambicionam o mesmo que as clássicas, ou seja, dar a conhecer outros mundos e desenvolver a empatia entre os leitores; obviamente, o impacto é muito maior.

Em espaços onde a tradição oral preserva alguma força, como ainda acontece na maioria dos países africanos, ou nas zonas rurais da América Latina, a experiência pode até soar um pouco estranha, não pela sua originalidade, mas por ser tão trivial. Nestes lugares as pessoas mais velhas nunca deixaram de representar o papel de livros que se folheiam ao entardecer. Os velhos não contam apenas as suas histórias, mas as histórias das comunidades onde estão inseridos.

Olhando para as bibliotecas humanas sinto certa inveja dos “livros”. Por muitos que escreva, nunca serei um deles. Ao contrário do meu pai, falta-me não só a memória mas a história — falta-me vida. Resta-me o papel de “leitor”, no caso, daquele que escuta. Mas não será esse também o papel do escritor?
José Eduardo Agualusa 

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