sexta-feira, setembro 18

A outra

Ntavase vivia numa aldeia distante, lá para os lados de Quissangira. Tinha quinze anos quando engravidou. Só ela sabia quem era o pai. Em casa perguntaram — Foi um soldado? — E Ntavase negou num silencioso menear de cabeça.

A criança nasceu torcida, a cabeça rodando sem assento nem descanso sobre o pescoço. — Desfaz-te dela— mandaram os parentes. Recusou. Foi expulsa de casa. Era culpa dela que a criança fosse assim anormal. Aquele menino tão malquisto era a punição pela sua infidelidade.
— Que infidelidade? — perguntou Ntavase — Como posso ser infiel se não sou esposa de ninguém?
— Ainda pior — disseram os familiares. — Começaste a ser infiel antes mesmo de casar.
Ntavase esperou que a mãe saísse para buscar água e suplicou por clemência: o homem que a engravidara era de fora. Começou por prometer. E acabou por ameaçar. Para o homem aquilo foi um momento. Para ela foi um tormento sem fim.
Ocupada em equilibrar a lata sobre a cabeça, a mãe falou sem tirar os olhos do caminho.
— Vais ser mãe e ainda não és mulher — disse. — E agora, que outro homem vamos escolher para teu marido?

Chegadas a casa, Ntavase ajudou a pousar a lata no chão. A mãe aceitou então que ela dormisse no quintal. Ntavase arrastou uma esteira e estendeu-a sob o alpendre, a uns metros da casa.
— A criança dorme dentro — sentenciou a mãe. —Tu estás suja, não entras.
— E como lhe dou o leite? — perguntou a filha.
— Quando ele chorar, nós chamamos-te — respondeu a mãe.
Era madrugada, o pai veio ter com ela. Ficou à sua frente, vendo-a a amamentar a criança. Esperou até que, saciado, o menino adormecesse.
— Estão aqui as tuas coisas — disse o pai deixando tombar um saco de serapilheira — Desaparece daqui, estás suja, vais trazer desgraças.

O homem entrou em casa e bateu a porta com a autoridade de quem encerra fronteiras. Ntavase vazou o saco e aproveitou a serapilheira para amarrar a criança às costas. E tomou a estrada para a vila de Quissangira. Pelo caminho cruzou-se com uma vizinha que vaticinou — Vai para essa terra que é grande. Lá as mulheres estão autorizadas a ter o seu próprio nome — A jovem Ntavase acenou afirmativamente. Mas ela viajava por outra razão. Era em Quissangira que morava o pai da sua criança.

Chegada à vila, Ntavase não se apresentou logo no seu destino. Com as próprias mãos, construiu um abrigo nas traseiras da estação de comboios. Entre quatro velhas chapas de zinco, instalou-se ela e o seu pequeno filho. Esperou que o pai da criança soubesse da sua presença e a fosse visitar.

Essa visita nunca chegou a acontecer. A criança foi crescendo, cada vez mais aleijada, a cabeça rodopiando mais e mais sobre os pequenos ombros. As pessoas afastavam-se, reclamando que a intrusa era portadora de má sorte. Durante todo esse tempo, a jovem mãe viveu naqueles dois metros quadrados de solidão. O chefe da estação ferroviária dava-lhe uns trocos sempre que ela coletasse lixos ao longo da linha férrea. Na berma dos carris, Ntavase abria uma cova e ali enterrava os desperdícios dos outros.

Sempre que ia trabalhar – e não tendo ninguém para cuidar do filho – a mulher cavava um buraco no chão do seu casebre, colocava a criança dentro da cova e ajeitava a areia a improvisar uma almofada em volta do delicado pescoço. Um dia viu que o menino criava raízes. Deu-lhe de beber. Era noite, o menino abriu a boca e a lua entrou inteira no seu corpo. Ainda quis tocar nele, para se despedir, mas as mãos não lhe obedeceram. Nessa madrugada, com as próprias unhas, Ntavase abriu uma cova num terreno baldio. Sabia que esse serviço não teria nunca fim. Para enterrar um filho é preciso uma cova maior que o mundo.

Foi então que, num final de tarde, Ntavase se apresentou em nossa casa. Vi essa desconhecida sair do arvoredo, vi-a a atravessar o quintal e sentar-se numa esteira. Apontou para o meu pai e disse — Deixaste a lua dentro de mim. Mas essa lua nasceu apenas por metade. E essa metade era muito pouca.

Foi assim que ela falou. E todos entenderam o recado da intrusa. Aquele menino, tão falecido, era meu irmão. A minha mãe levantou-se e atravessou o pátio num passo lento, como se estivesse a medir o tamanho do mundo. Entrou em casa e escutámos um arrastar de móveis. Voltou pouco depois com uma sacola nas mãos.
— Vais viver no meu quarto — ordenou a mãe à recém-chegada.
— Para o teu quarto? — perguntou, atónito, o meu pai. E repetiu, quase sem voz — O teu quarto?
De rosto erguido, a minha mãe enfrentou o marido. Os olhos do meu pai foram-se encolhendo como se nunca mais os fosse usar.
— Só voltas depois de dares nome a esse menino que morreu — ordenou secamente a minha mãe dirigindo-se ao meu pai e entregando-lhe a sacola que trouxera de dentro de casa — Regressa quando fores pai dessa criança.

Uma raiva de séculos se embrulhou nos dedos do meu velho. Ficou um tempo segurando o gesto e a palavra. Depois, proclamou, elevando o peito — Vou porque quero ir — E acrescentou, olhando para mim, como se fosse a sua derradeira lição — Se ficasse dava cabo delas as duas.

Fechou o portão do quintal e, com passo largo, foi desaparecendo pelo atalho. Escutei as suas injúrias enquanto pontapeava pedras, patos e galinhas.
— Vai dormir, meu filho — sentenciou a mãe. — Mas antes despede-te da tua mãe.

Dei um passo na direção dos seus braços, mas ela corrigiu e apontou para a intrusa — Despede-te não de mim. Mas desta outra tua mãe.

E pus-me em bicos de pés para abraçar aquela que acabava de chegar. A moça demorou a envolver-me nos seus braços. Mas depois, deixou-se ficar nesse abraço como se eu estivesse nascendo do seu corpo.

Durante incontáveis dias, fiquei na varanda espreitando pelo regresso do meu pai. Nessa infinita espera aprendi a chamar de saudade ao medo de que ele, um dia, voltasse para nossa casa.
Mia Couto
(*) Escrevo esta crónica no dia anterior ao julgamento em Maputo de um homem que violou uma menina de 10 anos. Ntavase é o nome fictício adotado por uma campanha de várias organizações da sociedade civil para designar todas as jovens que foram vítimas de violência sexual.

Nenhum comentário:

Postar um comentário