terça-feira, setembro 1

Os vivos e os outros

1
O mar continua pendurado na janela da sala, como um quadro um pouco torto, mas já não é o mesmo que Daniel Benchimol encontrou ao chegar à ilha, três anos antes. Mergulhou nele vezes sem conta. Conhece as correntes e as marés. Sabe onde repousam as naus, os galeões, os dhows e os pangaios naufragados. Visitou as praias e as ilhas. Olhou as baleias nos olhos e viu-as partir.
Depois de os conhecermos intimamente, os lugares passam a ser outros. O escritor puxa uma cadeira para junto da janela e senta-se de frente para a luz, a beber chá gelado. Moira ainda dorme, segurando com ambas as mãos a barriga dilatada. Também já não é a mesma mulher que ele conheceu, numa esplêndida tarde de abril, na larga varanda de um casarão colonial, na Cidade do Cabo.
A intimidade é o paraíso — e o inferno. Apaixonamo-nos pelo que ainda não conhecemos. O amor é o que acontece à paixão depois que a intimidade se instala. Isto, com sorte. Ele, Daniel, tivera sorte. Com Moira e com a ilha dela.
Calça um par de ténis e sai para o ar salgado da manhã. Corre ao longo da Rua dos Combatentes, junto à amurada, e depois pela praia, até à Igreja de Santo António, seguido por alguns garotos que o incentivam — «força, tio Daniel!», «mais depressa, tio!». Dá meia-volta e retorna. Moira aguarda-o na cozinha, com a mesa posta. Estende-lhe um copo.
— É sumo dos nossos limões. Bebe!
Daniel assim faz. Toma um duche rápido e junta-se a ela, à mesa.
— Os nossos escritores já chegaram todos? — pergunta, enquanto abre um mucate, pão feito de farinha de arroz e leite de coco, e o barra com manteiga de amendoim.
— Vão dar-nos muito trabalho.
— Está a ser divertido — contesta Moira. — E não, ainda não chegaram todos. Temos uma boa equipa. Vai correr bem.
Veste um bubu largo, o qual não consegue ocultar a barriga de nove meses. Escondeu as grossas rastas por dentro de um turbante alto, vermelho e amarelo, que lhe alonga o rosto.
— Como está a bebé?
— O bebé! Agora está a dormir.
— É uma menina. Tenho a certeza. Vai chamar-se Tetembua.
— Menino ou menina, despede-te dele agora porque tenho de ir trabalhar.
Daniel beija-a no umbigo e depois nos lábios. Moira sai. Ele entra no escritório e senta-se à frente do computador. Escreve durante meia hora. O telefone anuncia a entrada de uma nova mensagem. É de Uli Lima Levy:
«O que vais fazer esta manhã?»
«Estava à espera de que acordasses», responde o angolano. «Vou ter contigo.»
Uli chegara à ilha no dia anterior. Vinha cansado, após uma longa digressão por Espanha, França e Alemanha. Haviam jantado juntos no Karibu, um restaurante com comida honesta, nas palavras de Moira. Comida desonesta, para ela, é toda a cozinha industrial, que utiliza vegetais tratados com pesticidas, galinhas de aviário e peixes criados em viveiros. Comeram atum em molho de gengibre e depois Daniel acompanhou o amigo até ao hotel, o Villa Sands, onde estavam hospedadas duas outras escritoras, ambas angolanas, Ofélia Eastermann e Luzia Valente.



2
Ofélia Eastermann desperta com quatro versos bailando na cabeça: «Depois da meia-noite, às sextas-feiras, / Ofélia costurava no céu o infinito. / Enquanto isso, a brisa fluía entre palmeiras, / um rio-rumor de espíritos.»
Levanta-se e anota-os num pequeno caderno de capa vermelha, no qual escreveu em rudes letras negras: «Lixo onírico.»
Sempre que alguém lhe pergunta «de onde é a senhora?», Ofélia fecha os olhos e vê as ásperas mulolas pelas quais, na época das chuvas, correm súbitos rios. Vê os lentos caminhos de gravilha entre espinheiras, as carcaças ferrugentas dos navios, os mabecos levitando sobre as dunas. Vê uma mulher com a pele tingida de vermelho-ocre, tranças grossas, segurando uma menina nos braços. «Sou do Sul», responde. Noutras ocasiões, pretendendo chocar os interlocutores, o que acontece muito, escolhe uma fórmula diferente: «Sou de todas as camas onde fui feliz.»
Certa ocasião, durante uma entrevista, irritou-se com uma pergunta do entrevistador («A senhora nasceu no Sul de Angola, cresceu em Lisboa e vive no Rio de Janeiro. Afinal, sente-se mais angolana, portuguesa ou brasileira?») e, como a indignação é uma espécie de embriaguez, perdeu a compostura, assustando o jornalista com um grito que figura agora em centenas de sites literários, bons, maus e péssimos: «Eu sou é das palmeiras — foda-se! Nem angolana, nem brasileira, nem portuguesa! Onde há uma palmeira, eu sou de lá! Sou do mar e das florestas e das savanas. Venho de um mundo que ainda não chegou: sem deus, sem reis, sem fronteiras e sem exércitos.
Pré-publicação do novo romance de José Eduardo Agualusa

Nenhum comentário:

Postar um comentário