sábado, setembro 19

Assim começa o livro ...

Na rua Gorókhovaia, num daqueles casarões cujo número de habitantes equivale à população de todo um povoado da zona rural, Iliá Ilitch Oblómov estava deitado na cama de seu quarto, pela manhã.

Tratava-se de um homem de uns 32 anos, estatura mediana, aspecto simpático, olhos cinzentos e escuros, mas com o rosto privado de qualquer ideia definida e sem nenhum traço de concentração. O pensamento, como um pássaro solto, vagava pelo rosto, voava sobre os olhos, pousava nos lábios entreabertos, escondia-se nas rugas da testa, depois desaparecia por completo, e então em todo o seu rosto cintilava a luz neutra da indiferença. Do rosto, a indiferença se transmitia para a atitude de todo o corpo, até as pregas do roupão.

Às vezes seu olhar era ofuscado por uma expressão que parecia de cansaço ou de tédio; mas nem o cansaço nem o tédio conseguiam, por um minuto sequer, afastar do rosto a mansidão, que era a expressão predominante e característica não só do rosto, mas de todo o espírito; e o espírito rebrilhava com muita clareza nos olhos, no sorriso e em todos os movimentos da cabeça e das mãos. Um observador frio e superficial que olhasse de passagem para Oblómov diria: "Deve ser um simplório, um ingênuo!". Alguém mais profundo e mais receptivo, que contemplasse demoradamente seu rosto, teria se afastado com um sorriso e uma reflexão benévola.

A cor do rosto de Iliá Ilitch não era rubra, nem morena, nem francamente pálida, mas sim indefinida, ou assim parecia talvez porque Oblómov engordara demais para a sua idade: o motivo era a falta de movimento ou de ar puro ou, quem sabe, de ambas as coisas. A julgar pela cor desbotada e excessivamente branca do pescoço, pelas mãos pequenas e roliças, pelos ombros moles, seu corpo, no conjunto, parecia afeminado demais para um homem.

Seus movimentos, mesmo quando estava inquieto, também eram contidos pela brandura e por uma preguiça a que não faltava certo tipo de encanto. Quando no rosto perpassava uma nuvem de preocupações do espírito, o olhar se nublava, surgiam rugas na testa, tinha início um jogo de nuances de dúvida, de pesar, de medo; mas raramente aquela inquietação se consolidava na forma de uma ideia determinada e mais raramente ainda se transformava numa intenção. Toda inquietação se resolvia com um suspiro e se apaziguava na apatia ou num cochilo.

E como as roupas domésticas de Oblómov casavam bem com as feições tranquilas do rosto e com o corpo afeminado! Vestia um roupão de tecido persa, uma autêntica túnica oriental, sem a menor alusão à Europa, sem franjas, sem arremates de veludo, sem cintura, muito folgado, a tal ponto que mesmo Oblómov poderia se enrolar duas vezes no roupão. As mangas, de perfeita feição asiática, subiam dos dedos até os ombros cada vez mais largas. Embora o roupão tivesse perdido seu frescor original e em certos pontos houvesse trocado seu lustro primitivo e natural por um outro, artificial, ainda conservava no todo o brilho de uma beleza oriental e a resistência do tecido.

Aos olhos de Oblómov, o roupão possuía uma infinidade de méritos inestimáveis: era macio, flexível; o corpo não sentia seu toque; como um escravo obediente, ele se submetia ao mais ínfimo movimento do corpo.

Em casa, Oblómov sempre ficava sem gravata e sem colete, porque adorava o desembaraço e a liberdade. Seus sapatos eram compridos, macios e largos; quando, sentado na cama, baixava os pés no chão, sempre se calçava na primeira tentativa, mesmo sem olhar.

Ficar deitado não era para Iliá Ilitch nem uma necessidade, como é para um doente ou para alguém que deseja dormir, nem um acaso, como é para alguém que está cansado, nem um prazer, como é para um preguiçoso: tratava-se de um estado normal. Quando estava em casa -e quase sempre estava em casa-, ele ficava o tempo todo deitado, e sempre no mesmo quarto onde o encontramos e que lhe servia de dormitório, escritório e sala de visitas. Sua casa tinha ainda três quartos, mas Oblómov raramente punha os olhos naqueles cômodos, exceto pela manhã, e nem todos os dias, só quando o criado varria seu quarto, o que ele não fazia diariamente. Naqueles cômodos, a mobília estava coberta por panos e as cortinas ficavam fechadas.

Desde o primeiro olhar, o quarto onde Iliá Ilitch estava deitado parecia esplendidamente mobiliado. Tinha uma escrivaninha de mogno, dois sofás estofados com seda, um lindo biombo com bordados de pássaros e de frutas que não existem na natureza. Tinha cortinas de seda, tapetes, alguns quadros, peças de bronze, porcelana e uma infinidade de quinquilharias bonitas.

Mas o olho experiente de uma pessoa de bom gosto, com um só olhar de relance para tudo o que havia ali, identificaria o mero desejo de guardar o decoro e manter as indispensáveis aparências, tão só para não contrariá-las. Oblómov, está claro, tinha apenas isso em mente quando mobiliou seu escritório. Um gosto apurado não se contentaria com aquelas cadeiras pesadas e deselegantes de mogno, com as instáveis estantes de livros. O encosto de um sofá tinha tombado para trás, e o verniz da madeira havia descascado em alguns pontos.

Os quadros, os vasos e os objetos decorativos mostravam esse mesmo aspecto.


O próprio dono da casa, porém, olhava para a decoração de seu quarto de maneira fria e indiferente, como se perguntasse com os olhos: "Quem escolheu e trouxe tudo isso para cá?". Devido à maneira fria como Oblómov encarava sua propriedade, e talvez também devido à maneira ainda mais fria como seu criado Zakhar a encarava, o aspecto do quarto, quando observado com toda a atenção, revelava o descuido e a negligência que reinavam ali.

Nas paredes, em torno dos quadros, pendia uma teia de aranha semelhante a uma grinalda cheia de poeira; os espelhos, em lugar de refletir os objetos, poderiam servir antes como pergaminhos para escrever recados e lembretes no pó depositado sobre eles. Os tapetes estavam manchados. Sobre o sofá, jazia uma toalha esquecida. Na mesa, pela manhã, era raro não estar o prato do jantar da véspera, ainda não removido, com o saleiro, um ossinho chupado e migalhas de pão espalhadas.

Não fosse aquele prato, e um cachimbo recém-fumado e encostado à cama, ou não fosse o próprio dono da casa deitado na cama, poderíamos pensar que ali não morava ninguém -de tanto que tudo estava empoeirado, desbotado e, no geral, privado dos traços vivos da presença humana. Nas estantes, de fato, havia dois ou três livros abertos, um jornal com as folhas espalhadas, na escrivaninha havia um tinteiro e penas de escrever; mas as páginas em que os livros estavam abertos se encontravam cobertas de pó e amareladas; era evidente que os livros tinham sido abandonados havia muito tempo; o exemplar do jornal era do ano anterior e, se alguém introduzisse uma pena no tinteiro, dali talvez saísse somente, acompanhada por um zumbido, uma mosca assustada.

Ao contrário do costume, Iliá Ilitch acordara muito cedo, às oito horas. Algo o deixara muito ansioso. No rosto, surgiam alternadamente o medo, o tédio e a irritação. Era evidente que uma luta interior estava em curso e que a razão ainda não viera em seu socorro.

A questão era que, na véspera, Oblómov recebera da aldeia, pelas mãos de seu estaroste, uma carta de conteúdo desagradável. Sabe-se muito bem que tipo de coisas desagradáveis pode escrever um estaroste: fracasso da colheita, atraso no pagamento, redução das rendas etc. Embora o estaroste tivesse escrito para seu patrão no ano anterior, e também dois anos antes, cartas exatamente daquele mesmo teor, esta última produziu um efeito tão forte quanto o de qualquer surpresa desagradável.

E do que se tratava? Era preciso pensar em como conseguir meios para tomar certas providências. De resto é necessário fazer justiça à preocupação de Iliá Ilitch com seus negócios. Ao receber a primeira carta desagradável do estaroste, alguns anos antes, ele já começara a elaborar em pensamento um plano para diversas medidas e melhorias na organização de sua propriedade rural.

Aquele plano pressupunha a introdução de várias novas medidas econômicas, políticas e de outras naturezas. Mas o plano ainda estava longe de ser concluído, e as cartas desagradáveis do estaroste repetiam-se todos os anos, empurravam-no para a atividade e, em consequência, perturbavam a calma. Oblómov tinha consciência de que era necessário pôr em prática algo decisivo ainda antes de concluir seu plano.

Assim que acordou, ele prontamente resolveu que iria levantar-se, lavar-se e, após beber seu chá, refletir de modo adequado, chegar a alguma conclusão, anotá-la e, no geral, ocupar-se com aqueles assuntos da maneira devida.

Continuou deitado por mais meia hora, atormentando-se com aquela intenção, mas depois considerou que ainda teria tempo de fazer aquilo após o chá e que poderia muito bem tomar o chá como de costume na cama, tanto mais porque nada o impedia de pensar e continuar deitado.

Assim fez. Depois do chá, tratou de baixar as pernas e quase se levantou; lançou um olhar para os sapatos e até começou a esticar um pé na direção do sapato junto à cama, mas logo em seguida recuou.
Ivan Aleksandrovich Goncharov "Oblómov"

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