terça-feira, setembro 22

Assim começa o livro...

Nasci no ano de 1632, na cidade de York, de uma família boa, embora não original daquela área, sendo meu pai um estrangeiro de Bremen, que se estabeleceu primeiro em Hull. Acumulou boa fortuna com o comércio e, deixando esse ofício, instalou-se depois em York, onde se casou com minha mãe, cuja família chamava-se Robinson, muito boa família daquela região, ao que devo meu nome de Robinson Kreutznaer; todavia, devido à corrupção costumeira das palavras na Inglaterra, somos hoje chamados, melhor, nós mesmos nos chamamos, e nos assinamos, Crusoé, como meus companheiros sempre me chamaram.

Tive dois irmãos mais velhos, um dos quais chegou a tenente-coronel de um regimento inglês de infantaria em Flandres, comandado inicialmente pelo famoso Coronel Lockhart, e foi morto na batalha perto de Dunquerque contra os espanhóis.

O que foi feito do meu segundo irmão, nunca vim a saber mais que meu pai ou minha mãe jamais saberiam do que ocorreu comigo. Sendo o terceiro filho da família, e sem formação em nenhum ofício, desde muito cedo minha cabeça começou a se encher de pensamentos errantes. Meu pai, que era muito idoso, deu-me a devida quantidade de instrução, até onde geralmente chega a formação em casa e numa escola gratuita de província, e me destinava ao Direito; mas a mim não me satisfaria nada menos que seguir para o mar, e essa minha inclinação me opôs com tanta energia à vontade, ou melhor, às ordens do meu pai, e a todas as admoestações e persuasões da minha mãe e outros amigos, que parecia haver algo de fatal naquela propensão da Natureza, conduzindo diretamente à vida de infortúnios que mais adiante haveria de me caber.

Meu pai, homem sábio e grave, deu-me sérios e excelentes conselhos em oposição ao que antevia como meu destino. Chamou-me um dia de manhã a seus aposentos, aos quais estava confinado pela gota, e me cumulou de rogos fetuosos em torno do tema. Perguntou quais motivos além da mera inclinação pela vida errante eu tinha para deixar a casa paterna e a terra natal, onde podia
ter certeza de um bom começo e da possibilidade de melhorar sempre minha posição recorrendo tão somente ao zelo e à diligência, que me valeriam uma vida airosa e confortável. Disse-me ele que eram homens de fortuna desesperada, por um lado, ou com fortunas superiores e cheias de aspirações, por outro, os que seguiam para o estrangeiro em busca de aventuras, tentando ascender à custa da iniciativa e tornar-se famosos em empreendimentos fora do caminho comum; que eu era de condição média, ou o que se pode chamar da camada superior dos homens inferiores, que ele descobrira por longa experiência ser a melhor posição do mundo, a mais adequada à felicidade humana, poupada dos sofrimentos e das asperezas, dos trabalhos e das dores da fração mecânica da humanidade, e dos embaraços que o orgulho, o luxo, a ambição e a inveja podem trazer para a camada superior. Disse-me que uma coisa bastava para avaliar a felicidade desse estado, a saber: que era sempre essa a condição de vida invejada por todos os demais; que muitas vezes os reis lamentavam os efeitos terríveis de terem nascido para os grandes acontecimentos, desejando na verdade terem nascido a meio caminho entre os dois extremos, a igual distância do pequeno e do grande; que muitos sábios afirmavam ser esse o justo padrão da verdadeira felicidade; e que ele rezava para nunca se ver às voltas com a pobreza nem com riquezas.
Daniel Defoe, "Robinson Crusoé"

Nenhum comentário:

Postar um comentário