sexta-feira, abril 1

Os livros e os dias (Prefácio)

anitanh:

Found in the Internet Archive by AnitaNH
[...] que devemos buscar laboriosamente o significado de cada palavra e cada frase, supondo um sentido mais amplo que o permitido pelo uso comum, com a sabedoria, a coragem e a generosidade de que dispomos
Thoreau, Walden


Como todo homem de bom gosto, Menard abominava esses carnavais inúteis, somente aptos - dizia - para reproduzir o plebeu prazer do anacronismo ou (o que é pior) para atrair-nos com a ideia primária de que todas as épocas são iguais ou de que são diferentes
Jorge Luis Borges, Ficções


Existem livros pelos quais deslizamos os olhos alegremente, esquecendo uma página logo depois de virá-la; outros, que lemos com reverência, sem ousar concordar ou discordar; há também os que oferecem mera informação e dispensam nosso comentário; outros ainda que, por tê-los amado tanto e por tanto tempo, somos capazes de repetir palavra por palavra, uma vez que os conhecemos "de cor", no sentido mais profundo da expressão.

A leitura é uma conversa. Os lunáticos respondem a diálogos imaginários que ouvem ecoar em algum lugar de suas mentes; os leitores respondem a um diálogo similar provocado silenciosamente por palavras escritas numa página. Em geral a resposta do leitor não é registrada, mas em muitos momentos ele sentirá a necessidade de pegar um lápis e escrever as respostas nas margens de um texto. Esse comentário, essa glosa, essa sombra que às vezes acompanha nossos livros favoritos, estende e transporta o texto para o interior de um outro tempo e de uma outra experiência; empresta realidade à ilusão de que um livro fala a nós (seus leitores) e nos faz viver.

Poucos anos atrás, depois do meu 53o. aniversário, decidi reler alguns dos meus velhos livros favoritos e fiquei espantado, mais uma vez, pelo modo como seus mundos complexos e de muitas camadas pareciam refletir o caos sombrio do mundo em que eu estava vivendo. Uma passagem de um romance iluminava subitamente um artigo do jornal diário; um episódio já quase esquecido era reavivado por uma cena; uma simples palavra incitava uma longa reflexão. Decidi fazer um registro desses momentos.

Ocorreu-me então que, relendo um livro por mês, eu poderia completar, em um ano, algo entre um diário pessoal e um livro trivial: um volume de notas, reflexões, impressões de viagem, esboços de retratos de amigos e de eventos públicos e privados, tudo isso induzido pela minha leitura. Fiz uma lista dos livros escolhidos. Pareceu-me importante, por uma questão de equilíbrio, que houvesse um pouco de tudo. (Como não sou senão um leitor eclético, isso não seria muito difícil de conseguir.)

A leitura é uma tarefa confortável, solitária, vagarosa e sensual. A escrita costumava compartilhar algumas dessas qualidades. Nos últimos tempos, porém, a profissão de escritor adquiriu certas características das antigas profissões de caixeiro-viajante e ator de repertório. Os escritores são convocados a fazer apresentações únicas em lugares distantes, exaltando as virtudes dos próprios livros como se exaltavam vassouras ou enciclopédias. Em grande parte devido a esse tipo de compromisso, ao longo do meu ano de leituras eu me vi viajando para muitas cidades diferentes, mas desejando estar logo de volta ao lar, à minha casa numa pequena aldeia da França, onde guardo meus livros e faço meu trabalho.

Os cientistas imaginam que, antes de o universo passar a existir, ele se manteve num estado de potencialidade, com o tempo e o espaço em suspensão - "numa névoa de possibilidades", como definiu um comentarista - até o Big Bang. Essa existência latente não deveria surpreender os leitores, pois para nós cada livro existe numa condição análoga ao sonho até que as mãos que o abrem e os olhos que o percorrem agitam as palavras e as despertam. As páginas que se seguem são minhas tentativas de registrar alguns desses momentos de despertar.

Alberto Manguel

Nenhum comentário:

Postar um comentário