domingo, setembro 1

A árvore que engoliu o tempo

Tenho um amigo, o fotógrafo Sérgio Guerra, que coleciona imbondeiros. Ao desembarcar em Luanda, vindo de Salvador, há quase duas décadas, Sérgio ficou fascinado com a estranha beleza dos raros exemplares de imbondeiros que ainda sobreviviam nos bairros periféricos da capital angolana. Certo dia viu um grupo de populares preparando-se para derrubar um exemplar enorme. Parou o carro, e, conversando com os operários, ficou a saber que aquele terreno fora vendido para construir uma casa. Foi ter com o proprietário e comprou o terreno. O imbondeiro continua lá, recuperando de um corte enorme, no tronco, dentro do qual cabe um homem deitado. Depois disso, muitas pessoas passaram a procurar o meu amigo, querendo saber se ele estaria interessado em comprar terrenos com imbondeiros dentro – e ameaçando derrubar os imbondeiros caso ele não comprasse os terrenos.

Acabou comprando mais uns tantos.

Susa Monteiro
Estava em casa de Sérgio, numa manhã de cacimbo, quando surgiu um sujeito magro e nervoso, à procura do homem que colecionava imbondeiros. Sérgio interrompeu-o, um pouco irritado, para informar que não, que já não estava no negócio de comprar imbondeiros.

– Não é um imbondeiro – disse o homem: – É uma mulemba muito grande e está enfeitiçada.

Sérgio nunca se interessou por mulembas (Ficus thonningii), embora sejam árvores belíssimas, talvez porque no Brasil existam espécies muito semelhantes. Em contrapartida, a parte da magia chamou-lhe a atenção:

– Como assim, enfeitiçada?

O homem implorou que o acompanhássemos.

Se contasse não iríamos acreditar. Era importante ver o prodígio. Ele demorara para encontrar a casa de Sérgio. Tivera de apanhar dois candongueiros e de caminhar muito. Porém, se fôssemos de carro, não levaríamos mais de meia hora. Lá fomos.

Uma hora e meia depois chegámos a uma ruela estreita, de terra batida, já fora dos limites da cidade. Atrás de um muro alto erguiam-se as ramadas verdes de uma enorme mulemba. Alguém abriu o portão e entrámos.

Havia uma dúzia de homens reunidos em torno do grosso e intrincado tronco da mulemba. O ar estava carregado de perplexidade estática. Um dos homens, quase tão gordo como a mulemba, e com uma cabeleira igualmente densa e redonda, descolou-se dos restantes e avançou para nós:

– Senhores! Precisam ver isto!

Os outros afastaram-se, e vimos os golpes rudes abrindo caminho através das grossas raízes suspensas da imensa árvore. A lâmina de um dos machados quebrara-se ao bater em algo duro. Dentro da confusão de raízes emergia parte de uma forma sólida, em ferro, com perto de vinte centímetros de largura e uns trinta de altura.

– Incrível! – disse Sérgio: – É um cofre!

Lembrei-me de ter visto fotografias de diversos objetos de ferro encontrados no interior de árvores, ou meio devorados por elas: moedas, bicicletas, sinais de trânsito e até material de guerra. Se colocarmos uma corrente de ferro ao redor de um tronco grosso, este acabará por absorver a corrente. Imaginemos que alguém fotografe a árvore devorando a corrente, todos os dias à mesma hora, durante anos e anos. No final, colando as imagens todas, veremos a árvore devorando a corrente em poucos minutos: um filme de terror. Aquele é o tempo das árvores. Elas olham para nós e veem pequenos animais correndo rapidíssimos de um lado para o outro, envelhecendo e logo morrendo. Para uma mulemba, um homem é um inseto efémero.

Os camponeses escutaram-me de cabeça baixa, num silêncio atento, que eu ingenuamente confundi com respeito. Então, aquele que se parecia com uma mulemba soltou um breve muxoxo e concluiu que o terreno estava enfeitiçado. Sérgio sorriu:

– Tudo bem. Quanto quer por ele?

Ao fim de dez minutos chegaram a um preço. Nessa tarde, Sérgio Guerra tornou-se o feliz proprietário de um terreno sem préstimo e de uma enorme mulemba encantada. Regressámos a casa um pouco atordoados.

– O que vais fazer com a mulemba? – perguntei.

Sérgio acendeu um cigarro. Recostou-se na cadeira, olhando as lentas espirais de fumo que se perdiam no ar e suspirou:

– O que você acha que tem dentro daquele cofre?

– Um tesouro, uma maldição, uma receita de bolo de banana, as cartas de amor de um velho colono português?

– Amanhã mando alguém abrir o cofre.

Na manhã seguinte voltámos ao terreno, na companhia de Aristóteles Vapor, um antigo guerrilheiro que há muitos anos trabalha para Sérgio como motorista, mecânico e competente eletricista. Aristóteles estudou a árvore, bateu três vezes com os nós dos dedos na parede do cofre e finalmente sentenciou:

– Dá para cortar com um maçarico. Fácil.

Foi ao carro buscar o maçarico. Sérgio sentou-se numa pedra, à sombra da mulemba, a enrolar um cigarro, e antes que Aristóteles regressasse já havia mudado de ideias:

– Vamos deixar o cofre assim mesmo.

– Não queres saber o que está lá dentro?

– Um mistério – é isso que está lá dentro. Enquanto não abrirmos o cofre teremos sempre um belo mistério. Se o abrirmos, não sei o que teremos. Provavelmente, nada tão interessante.

Sempre que vou a Luanda, o meu amigo leva-me em visita à mulemba. Afastando as ramadas, ainda é possível ver o cofre. Encosto a palma da mão ao metal antigo e sinto o mistério a palpitar lá dentro.

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