segunda-feira, setembro 30

Reescrevendo Lobato & Cia

— A obra do Monteiro Lobato caiu em domínio público. Vamos republicar tudo!

— Que ótimo! As novas gerações merecem.

— Pois é, mas temos que atualizar algumas coisas.

— A ortografia, com certeza.

— Também, mas não só.

— Não vamos mexer no enredo e nos personagens, certo?


— Claro que não! Isso descaracterizaria a obra. Mas Emília não pode ser uma boneca.

— Por quê?

— Brincar de boneca contribui para a construção de um entorno social que mantém as mulheres longe das profissões ligadas à ciência e à tecnologia. Além disso, “boneca” é pejorativo para transgêneros e travestis. Emília poderia ser um... patinete, para estimular o uso de meios de transporte não poluentes.

— Narizinho vai conversar com um patinete, então?

— Mais ou menos. Ela não poderá mais se chamar Narizinho, que é uma clara referência aos padrões estéticos impostos pelo patriarcado. Já imaginou o sofrimento de uma menina nariguda diante dessa discriminação?

— Mas “As reinações de Narizinho” é um clássico da literatura infantil...

— Melhor evitar a palavra “reinações”, que tem evidente conotação antirrepublicana.

— “Caçadas de Pedrinho”, então, nem pensar?

— Nem pensar. Incita ao extermínio da fauna. Será “A horta orgânica de Cauã”.

— Quem é Cauã?

— Tiramos Pedrinho da história. Por uma questão de representatividade, entrará Cauã, um tupinambá. Suas aventuras serão plantando chia, quinoa e linhaça.

— Ajudado pelo Visconde?

— Nada de títulos nobiliárquicos. Esse sistema elitista de castas não pode ser perpetuado. Sabugosa será uma espiga de milho não híbrido nem tratado com agrotóxicos, que compartilha com Cauã seus saberes nos cultivares da horta comunitária.

— Pelo menos Dona Benta...

— Esse nome está ligado a uma religião majoritária, monoteísta e com um histórico de intolerância (cruzadas, inquisição, catequese dos povos indígenas). Vovó Conga fica melhor.

— Ela e Tia Nastácia...

— ... são sócias. Ou melhor, têm uma cooperativa ecossustentável, dedicada à produção de kombutcha. E devem ser evitadas todas as referências a idade, peso, cor de pele ou subordinação.

— O saci...?

— Fará campanha antitabagista, terá uma prótese e será atleta paralímpico.

— “Emília no país da gramática”?

— Será “Emília na comunidade das variantes linguísticas”. E não se esqueça que Emília agora é patinete, agênero.

— Mas vamos pelo menos manter o “Sítio do pica-pau amarelo”?

— Temos que repensar esse lance do sítio. Sitiar é assediar, coagir. Há uma violência implícita. Vamos mudar para “chácara”, que é uma propriedade menor, menos vinculada ao latifúndio. E, além disso, a palavra é de origem quíchua, de um povo oprimido.

— Tá, “A chácara do pica-pau amarelo” fica bacana.

— Pica-pau, sem chance. Lembra os madeireiros que devastam a Amazônia. E enseja trocadilhos falocêntricos. Para amortizar a dívida histórica com o gênero feminino, podemos substituir por “periquita”.

— Hmmm ... “A chácara da periquita amarela” não parece título de pornochanchada?

— Não será amarela, porque o termo soa depreciativo aos asiáticos.

— Uma cor neutra, então? Cinza? Bege? Off-white?

— Temos que ser inclusivos, não neutros. Será “A chácara da periquita de todas as cores do arco-íris”. Agora, mãos à obra porque daqui a pouco é a vez de reescrever o Ziraldo — “O menino maluquinho” estigmatiza portadores de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade. E a Maria Clara Machado (“Pluft, o fantasminha” é uma afronta aos ateus e não reencarnacionistas), o Vinicius de Moraes (“A arca de Noé” antropomorfiza os animais, reforçando o especismo) e a Ruth Rocha (como é que alguém com dislalia e dislexia vai ler “Marcelo marmelo martelo”?).

[Tudo isso é só uma argumentação "ab absurdo". Obras em domínio público podem ser livremente adaptadas. Monteiro Lobato fez o mesmo com contos de fadas, mitologia grega. Era um visionário, mas — como qualquer um de nós — não completamente livre da mentalidade da sua época. Que haja também novas edições com o texto original e notas explicativas, para que não seja lido só de segunda mão. Os termos racistas não farão falta — mas onde passa um boi passa uma boiada. E, como no Brasil o absurdo volta e meia acontece, para esse diálogo deixar de ser ficção não precisa muito.]
Eduardo Affonso

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