domingo, setembro 22

Palavras más

Conheci o escritor nigeriano Uzodinma Iweala em outubro de 2012, no festival literário de Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Gosto tanto do primeiro romance dele, “Feras de lugar nenhum”, que escrevi o prefácio para a edição brasileira. Mais tarde, escrevi um outro para a edição portuguesa. Passeamos e conversamos muito durante aqueles dias felizes em Cachoeira . Uma tarde, depois que se criou entre nós certa cumplicidade, Uzodinma quis saber se me incomodava ser tratado por mulato. Nunca me reconheci em classificações raciais. Na verdade, nem sequer me reconheço no meu nome, que me soa tão alheio agora quanto me soava quando era criança. Acho tão estranho ser apresentado como branco, quanto como mulato ou indiano — o que também acontece. Nenhuma raça me define. Não sou uma raça.

Respondi que aquela palavra tanto pode magoar quanto celebrar ou acarinhar. O que magoa é o sentimento que nela coloca quem a utiliza. Os etimologistas divergem quanto à origem do termo mulato. Uma corrente acredita que a mesma vem de “mula”, com forte carga pejorativa. Outros defendem uma tese infinitamente mais interessante: mulato viria de uma antiga palavra árabe, mowallad , usada durante os oito séculos de domínio africano da península ibérica, para nomear os filhos de muçulmanos com cristãos. Não havendo consenso entre os especialistas, cada um é livre de escolher a tese que lhe parecer mais sensata, ou mais bonita. Eu prefiro a última.

Em qualquer caso, é certo que a palavra está profundamente entranhada na cultura popular do mundo lusófono, do Brasil a Angola, passando por Cabo Verde. Poucas pessoas pensam na sua origem quando a utilizam, da mesma forma que a ninguém ocorre que a palavra “moreno” já foi um insulto para designar todos aqueles que se parecessem com mouros. Felizmente, entre nós, nem mouro é mais insulto. Na Espanha, porém, continua a ser, talvez devido ao grande número de imigrantes vindos do norte da África.

Na última vez que visitei Marrocos, o funcionário da Alfândega começou a rir quando lhe mostrei o passaporte.

— Onde você arranjou este nome e este passaporte? — perguntou-me em francês, meio a sério, meio a brincar, depois de ter tentado falar comigo em árabe. — Você é igual a nós. Você é daqui!

Quase retorqui: “Descendo de mowallads ” — mas tive receio que ele não entendesse a minha pronúncia, ou de que a palavra já nem exista mais.

Pensei nisto há poucos dias, em Berlim, enquanto escutava a psicóloga e artista portuguesa Grada Kilomba, com quem partilhei uma mesa num festival literário. Grada esteve na Flip este ano. O seu livro, “Memórias da plantação”, foi o mais vendido em Paraty durante o evento. Grada está em guerra contra a língua portuguesa, que considera moldada por um pensamento racista, colonial e machista. A palavra mulato seria apenas um exemplo deste pensamento. Gostei de a ouvir. O discurso de Grada inquieta, perturba, desarruma convicções. Uma língua é tanto o resultado de um pensamento dominante, com a soma de todos os seus preconceitos, quanto ajuda a firmá-los. Entendo isso, Grada. Concordo. Só que mulato talvez não seja o melhor exemplo.

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