sábado, setembro 28

A luxúria oculta guardada na Biblioteca Nacional

São folhetos de papel de baixa qualidade, que quase se desfazem nas mãos. Na capa, imagens libidinosas — mulheres nuas, cupidos em pleno voo, moças comportadas a um passo de perder a compostura — e promessas de contos ilustrados com “estimulantes gravuras do mundo natural”. À primeira vista, é difícil entender como esse material, datado do final do século XIX e início do XX, veio parar na seção de obras raras da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro. Mas é mesmo lá que se encontram, abertos para consulta, títulos sugestivos como Consolo de viúva , Um marido em apuros , Chifres para todos e Prazeres de colegiais , para citar só alguns.

O conjunto de mais de 50 publicações antigas, produzidas no Brasil e originalmente comercializadas na redação do finado jornal satírico carioca Rio nu , faz parte do chamado “inferno” da Biblioteca Nacional, que reúne obras vistas como incômodas à época em que chegaram à instituição. Com medo de que fossem destruídas ou confiscadas, funcionários dificultaram sua catalogação e as esconderam em lugares onde não deveriam estar. Foi o caso desses folhetos pornográficos, que, embora hoje estejam a salvo, continuam ignorados por público, editoras e pesquisadores. Seu conteúdo, no entanto, não para de surpreender a chefe da divisão de obras raras da Biblioteca Nacional, Ana Virginia Pinheiro, que desde 2014 vem executando a recuperação dessas publicações. Na contramão de um Brasil onde casos de tentativa de censura se multiplicam, como a tentativa de recolher uma história em quadrinhos com beijo homossexual na última Bienal do Livro do Rio, no início de setembro, a pesquisadora luta para um maior reconhecimento dessa pouco analisada e editada produção erótica nacional.

“Esses folhetos chegaram aqui pelo próprio jornal, via lei do depósito legal na época, já que coleções particulares não guardavam isso”, disse Pinheiro. “Tenho certeza de que acabaram nas obras raras porque os funcionários queriam escondê-los. Talvez alguém procurasse por isso em obras gerais, jamais aqui nesta divisão. Mas, se elas foram escondidas para serem preservadas, agora merecem ser divulgadas, estudadas e compreendidas. Lembro-me de certa vez em que minha avó, ao ver uma publicação pornográfica numa banca de jornais, disse que isso não existia no tempo dela. Hoje sei que estava mentindo.”

A coleção do “inferno” é mais ampla e não se limita a esses folhetos de papel barato do século XIX. Na verdade, ela contém livros de todos os tipos, gêneros e épocas — alguns mais antigos, trazidos pela Família Real em 1808, e outros mais novos, perseguidos pela ditadura militar. Mas, se algumas das obras foram escondidas pelos motivos mais diversos — desde políticos, como o diário de viagens pela União Soviética de Jorge Amado, até religiosos, como uma edição do século XVII de A cidade de Deus , de Santo Agostinho, cujas notas foram censuradas pela Igreja —, esse subgrupo composto dos contos “naturais” incomoda por uma razão óbvia: sua franca obscenidade.

“Não existe limite moral nessas histórias. Às vezes o pesquisador tem até vergonha de dizer que está procurando”, afirmou Pinheiro. O primeiro paralelo que vem à mente são as publicações de Carlos Zéfiro, que introduziram muitos jovens à pornografia entre os anos 1950 e 1970. Basta ler as primeiras linhas, no entanto, para perceber que as narrativas fazem o velho Zéfiro soar quase como um carola.

Práticas como sexo grupal ( Em plena orgia ), homossexualidade ( Laurinha e Bibi , O menino do Gouveia ), incesto ( Família ) e até zoofilia ( Variações do amor ) são tratadas com a maior naturalidade, com descrições gráficas e uma certa dose de cinismo, alheio ao moralismo da época. Visualmente, as publicações também são ousadas. Trazem, em seu interior, fotos de sexo explícito, importadas da Europa. O conceito era simples: criar uma história original — e brasileiríssima — a partir de imagens produzidas para “estimular o sexo solitário”, como bem explica, de maneira técnica, uma descrição feita para uma exposição de 2017 da Biblioteca Nacional dedicada a esses livros.

Um dos volumes mais emblemáticos, segundo Pinheiro, é A pulga , escrito por um certo Lucio D’Amour. Nele, um militar aposentado contrata um homem negro para fazer a segurança da casa. Este, descrito com todos os estereótipos possíveis, logo atiça o desejo da jovem esposa do militar. Como o segurança não consegue entender suas segundas intenções, ela faz de conta que uma pulga entrou em seu ânus e o obriga a procurá-la.

“É um conto que mostra a mulher em um papel mais ativo”, observou Pinheiro. “E, de forma geral, a mulher nessa literatura não é só objeto sexual. Ela é a pessoa que demanda por sexo, ela é a pessoa que comanda toda a cena, escolhe o homem ou a mulher. Elas têm uma sexualidade exacerbada, assumida, e isso é muito surpreendente para a época.”

Outra surpresa, afirmou Pinheiro, é a qualidade do texto desses folhetos, inversamente proporcional ao material em que foi publicado. É sabido que escritores prestigiados trabalhavam como “ghostwriters” para publicações pornográficas, e provavelmente estão por trás também de alguns dos pseudônimos que assinam os folhetos, como Zé Teso, Manuel Brochado, Pepe Galhardo, Capadócio Maluco e Pat de Patagonia.

Os respeitáveis Olavo Bilac e Coelho Neto, por exemplo, teriam escrito anonimamente um nunca encontrado — e talvez nunca publicado — livreto obsceno. O fato só se tornou público nas memórias de Humberto de Campos, para quem os poetas supostamente confessaram a autoria de uma encomenda intitulada Almanaque do ânus . Autor de A escrava Isaura , Bernardo Guimarães é hoje reconhecido como o autor do famoso poema erótico “O elixir do pajé”, atribuído à época de seu lançamento a um sacristão e cuja edição fac-similar — fartamente ilustrada — também repousa no “inferno” da Biblioteca Nacional.

Apesar de sua qualidade literária e de sua importância histórica, esses textos quase não ganharam dissertações e teses da academia, segundo Pinheiro. As reedições são, até agora, raríssimas. A mais conhecida é O menino do Gouveia , lançada em 2017 pela editora O Sexo da Palavra. Considerado uma das primeiras representações homoeróticas da literatura nacional, o conto de 1914 traz a relação entre um prostituto menor de idade e um homem mais velho.

Pinheiro lembrou que já foi consultada algumas vezes sobre publicações mais ambiciosas, mas até agora nada foi adiante. A editora e bibliófila Aninha Franco, fundadora da República AF, contou que recentemente cogitou publicar um box com várias histórias da coleção, mas que desistiu por causa do “clima político” do Brasil atual.

“Há 500 anos que o Brasil é erótico, ele nunca deixou de ser”, disse Franco. “Mas, hoje, seria impossível conseguir um patrocínio para esse tipo de publicação. É uma pena, porque esse material é erotismo da melhor qualidade, e o Brasil precisa conhecer melhor o Brasil.”

Justamente por ver uma “tendência à censura” na atualidade, Pinheiro acredita que este é o momento de promover os folhetos. Por via das dúvidas, ela mantém as obras da mesma forma que seus antecessores do “inferno” deixaram: dispersas e mal catalogadas. Até hoje, por medo de que acabe sendo acusada de apologia à pornografia, a pesquisadora não conseguiu elaborar uma forma de publicar esses textos nos anais da Biblioteca Nacional.

“Eles estão aqui na biblioteca e podem ser vistos. Não são nenhum segredo”, disse ela. “Mas a humanidade repete a história, e não se pode facilitar.”

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