sábado, setembro 14

A primeira língua


Kianda, a minha filha mais nova, agora com 16 meses, ainda não aprendeu a falar. O vocabulário dela é apenas um pouco menos pobre do que o de Jair Bolsonaro, e quase idêntico, tirando os palavrões — diz “cocô” e “xixi”, por exemplo, embora, ao contrário de Jair, utilize essas palavras somente quando precisa delas e sem jamais comprometer a elegância e a dignidade da sua pequenina pessoa.

Ver um bebê crescer é como assistir ao desenvolvimento da humanidade, desde que irrompemos das cavernas, até aos dias de hoje. De início, gatinhando; depois, em passos hesitantes, testando a verticalidade. O mesmo com a linguagem: as primeiras palavras de uma criança, são, como certamente foram as primeiras palavras dos nossos distantes ancestrais, simples e breves. Apenas uma sílaba ou duas, nomeando entidades ou sentimentos fundamentais: pai, mãe, fome, medo. E a seguir: dor, luz, sangue, céu, chão, pau, pedra, pó, só, bom, mau, lobo, cobra, cão. É assim em todas as línguas.


Regra geral, consegue-se saber se uma palavra surgiu cedo ou tarde, contando o número de sílabas. Suponho que palavras tardias, longas, traduzam em geral conceitos complexos. Contudo, não há conceito mais complexo do que Deus e esta palavra tem, na maioria das línguas, apenas uma ou duas sílabas: zot, em albanês; atua, em maori; mungu, em swahili, etc. Há excepções interessantes. Assim, em malgaxe, língua de Madagascar de origem malaia, Deus diz-se andriamanitra, a palavra, porém, é uma soma de outras duas: nobre e perfumado. Isto porque, segundo a lenda, os profetas eram capazes de sentir a aproximação de Deus, com o qual conversavam, no instante em que o ar se enchia de perfume.

Para os leitores surpreendidos com o meu conhecimento de idiomas exóticos, confesso que apenas me limitei a utilizar o Google Tradutor. Confissão feita, e, desde já, responsabilizando o Google por eventuais equívocos, voltemos a Deus. Imagino que para aqueles homens rústicos, saídos das cavernas, a imensidão da noite os aterrorizasse. Deus deve ter sido um primeiro nome para abismo (“tudo quanto excede o que já de si é excessivo”, define um dos meus dicionários). Aliás, em quimbundo, uma das línguas de Angola, Deus pode dizer-se kalunga, que é também o nome dado ao mar e a “tudo quanto excede o que já de si é excessivo”.

Há alguns anos contaram-me uma história curiosa sobre um casal português que foi trabalhar em Macau, deixando a bebê aos cuidados de uma babá chinesa. Preocupado com a menina, porque aos dois anos e meio ainda não falava, embora tagarelasse muito na linguagem secreta dos bebês, o casal levou-a a um pediatra. O médico macaense escutou a menina durante alguns minutos. Então, abriu um largo sorriso e disse aos pais para não se preocuparem. A menina falava bem, dizia frases inteiras — só que em cantonês,
o dialeto chinês corrente em Macau.

Penso em tudo isto enquanto escuto a minha filha. E se existir uma lógica naquela algaraviada? Talvez ela fale a língua primordial de Adão e Eva. Talvez os bebês estejam tentando transmitir-nos um segredo remoto, enquanto ainda se lembram. Infelizmente, nós já não falamos essa língua.
José Eduardo Agualusa

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